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A MORTE DE IVAN ILITCH

Liev Tolstói

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APRESENTAÇÃO

Yuri Al'Hanati

 

Lembro que a primeira vez em que soube da existência de A morte de Ivan Ilitch foi por meio de um amigo que me disse que odiara o livro. Não que fosse mal escrito, pelo contrário: era tão bem escrito que, segundo ele, quase havia morrido junto com o personagem durante a leitura. De fato, se a literatura nos permite viver muitas vidas, também nos possibilita morrer muitas mortes. E esse morrer junto, na literatura, só pode ser realizado no diálogo amoroso entre um bom escritor e um bom leitor.

Pois bem: eu, que em Tolstói já havia morrido com Anna Kariênina, fui morrer com Ivan Ilitch e experimentar a mais perfeita novela de um dos maiores escritores que já caminharam sobre a Terra. Ao final da leitura, A morte de Ivan Ilitch havia se tornado um dos meus livros favoritos, aquele que passo a vida indicando para todo mundo.

Existe um arquétipo da literatura russa que se convencionou chamar de “homem pequeno”, que oferece uma abordagem humana e um olhar próximo ao pequeno burocrata, homem sem realizações e sem mobilidade social. Temos a maior representação desse arquétipo em Akáki Akákievitch, protagonista do conto “O capote”, de Nikolai Gógol. Akáki é um funcionário de baixo escalão, ridicularizado por todos, para quem um capote novo e sem furos representaria o fim da injúria e da infelicidade.

Tolstói estendeu a dimensão do “homem pequeno” para o interior do ser ao compor Ivan Ilitch, grande burocrata de alma pequena. Ivan, afinal, se crê respeitado e bem-sucedido em sua carreira de juiz, alheio ao fato de que fez pouco mais do que emular uma personalidade com sua trajetória emergente e angariar inveja em relacionamentos interesseiros. A todo momento Tolstói escancara a pequenez sentimental de Ivan e reduz sua vida a nada, enquanto faz da morte seu maior instante de esclarecimento, o único verdadeiramente “seu”, livre das amarras sociais da conveniência e da expectativa. É como se Akáki Akákievitch chegasse ao topo da hierarquia das repartições públicas com seu imponente capote e descobrisse que de nada adiantou projetar sua felicidade em seus bens, já que o que tem diante de si agora é nada além de um império de poeira.

Em seu livro Do amor, o escritor francês Stendhal faz uma bela defesa da literatura como forma de autoconhecimento. De modo geral, ele diz que, da mesma maneira que não estudamos anatomia abrindo as próprias tripas, mas, por comparação, estudando outro corpo, também desconhecemos a face de nossas paixões sem um estudo observador da fraqueza alheia, por causa da “vaidade e várias outras causas da ilusão”.

Eis a beleza da literatura: Tolstói, desde sempre um obcecado pela morte, mata com minúcias de agonia um personagem desinteressante e altivo, apenas para que seu leitor conheça aquilo que é honestamente importante em sua própria vida – sem que para isso tenha que se tornar um moribundo de fato. Foi o que eu senti todas as vezes em que li esta pequena e poderosa obra: o escritor, em um texto inteiro sobre a morte, faz um chamado à vida. Aquela verdadeira: intensa, aprimorada, feliz e cujas rédeas estão sempre nas nossas mãos, nunca nas dos outros. A lição é dura e traumática, mas mantém seus fins pedagógicos e vai além do homem russo de seu tempo. Qualquer ser humano no mundo pode morrer com Ivan Ilitch e entender sua universalidade.

O livro que você agora tem em mãos, portanto, não é apenas uma bem acabada obra de arte literária e editorial, é também um tratado epistemológico do coração. Tolstói escreveu um livro curto como a vida, e é impossível lê-lo sem pensar em mudar algo que nos insatisfaça no momento. Da minha parte, espero que esta leitura lhe sirva para pelo menos três coisas: testemunhar uma escrita magistral, amar a literatura russa do século XIX e olhar no olho fictício da morte para poder realizar algo que verdadeiramente faça sentido para você. Antes tarde do que tarde demais.

 

*YURI AL’HANATIescritor e jornalista de cultura, autor do livro Bula para uma vida inadequada. Criou em 2010 o Livrada!, plataforma multimídia sobre literatura.

Posfácio 01

A morte do ilustrador

por Luciano Feijão*

Diante da morte de Ivan Ilitch, fui autoconvocado a definir as condições físicas e emocionais para que eu pudesse percorrer os caminhos que me levariam não somente ao desenvolvimento eficaz das imagens que acompanham essa história, mas, ao mesmo tempo, a pensar fundamentalmente nos muitos sentidos gerados a partir dos entrelaçamentos afetivos entre palavras e imagens, que compõem o jogo da criação.

Na medida em que há um investimento nessa travessia, um investimento no corpo que caminha e desenha, novas e mais sintomáticas são tanto as estradas como as escolhas que surgem desse acordo oculto entre escritor e desenhista, e que se misturam às próprias determinações e formalidades do ofício de ilustrar.

Que novas estradas são essas que apareceram pra mim?

A primeira que surgiu foi aquela na qual, em meio às incertezas de uma paisagem completamente desconhecida (Rússia, século XIX), precisei percorrê-la esvaziado. Esse espaço interno desabitado permitiu uma melhor acomodação das palavras, das frases e dos excessos de ambiguidades que delas surgiam. O corpo que caminha e desenha, mais uma vez, precisou estar vazio das expectativas e do encarceramento semântico que condicionam a produção de imagens dentro de marcas pré-determinadas. Somente assim, em meio a uma crise de repertórios, foi possível ouvir os gritos de Ivan sem interpretações dúbias, e saber traduzir graficamente o timbre genuíno daquela dor.

Depois do vazio vem a morte. Essa é a segunda e mais difícil estrada que me orientou.

Para Ivan, o fim trazia uma espécie de compensação moral diante do sufocamento que certos tratados sociais revelavam, cuja carga de responsabilidades era demasiadamente pesada e sem sentido. A imensa dor física que Ivan sentia se acomodava nas suas próprias determinações sobre a vida.

Para mim, a morte é uma aliada, é o caminho da não existência enquanto prática de libertação de si, ou seja, é preciso se deixar morrer para que algo novo possa surgir. As ilustrações também encontram eco nessa premissa, pois, ao se incorporarem a um novo trabalho, elas devem traduzir essa concepção de morte/emancipação ao se distanciarem de estilos, de modismos, de maneirismos e até do ego do próprio ilustrador, servindo unicamente para decifrar e ampliar os sentidos e enigmas do texto, de maneira legítima e sem os habituais vícios de linguagens. A ilustração deve se tornar autônoma.

Talvez este seja o ponto de interlocução entre eu e Ivan Ilitch: a morte.

Se o desenho dispara experiências fortuitas que surgem na prática e que, simultaneamente, são fruto de vivências anteriores ao próprio ato de desenhar, fica a questão: que abordagem é preciso enfatizar para manifestar, de maneira íntegra, a experiência da morte, mesmo ela sendo, por enquanto, a minha sombra?

É assim que me aproximo de Ivan Ilitch: pela morte dele eu vejo a minha própria, na medida em que meu testemunho ilustrado não pode estar fadado somente ao relato gráfico da dor de Ivan, a uma representação externa. Precisa, sim, ser vivenciado na deferência que a verdade dessa tragédia marcada em seu corpo imputa no presente, esse compartilhar a dor com o mundo, em comunidade, para, assim, reconstruí-lo na base do meu relato.

Ivan foi um homem que procurava a perfeição. Perfeição é a morte. Somente a imperfeição é infinita.

Obrigado, e obrigado também ao querido amigo e mestre Lourenço Mutarelli. Sem a sua confiança em meu trabalho, nada disso seria possível.

 

*LUCIANO FEIJÃO é professor, artista visual e ilustrador. Produz ilustrações profissionalmente para livros, jornais e revistas desde 2003. Dentre os trabalhos publicados, destacam-se os realizados para: Editora Abril, Bertrand Brasil, Editora Borda, Folha de S.Paulo, Revista Gráfica, Le Monde Diplomatique Brasil, Bebel Books e Companhia das Letras.

Posfácio 02

Sobre arte e morte

 por Julián Fuks*

Do incompreensível, do imensurável, poucos autores são capazes de destilar alguma lucidez. Tolstói o faz neste livro com tal maestria que nós, seus leitores, sentimos por um instante a possibilidade de alcançar a mesma clareza, de apreender o inapreensível: de entender a morte, a um só tempo própria e alheia. Na morte de Ivan Ilitch todos morremos. Deixamos de lado o cinismo de seus colegas, já não acusamos a desfaçatez do outro ao morrer, sua tolice em sucumbir. Em vez disso, a cada página, vamos conhecendo cada vez mais de perto a agonia, vamos aderindo ao corpo que fenece, vamos sentindo sua terminante vertigem.

A arte de Tolstói, mesmo nesta curta novela, parece se valer do adiamento, da passagem lenta e precisa dos parágrafos e do tempo. Já na primeira página, vemos anunciada a morte do protagonista, já no título ela consta, nenhum mistério a esconder. Ainda assim, há um caminho a percorrer até chegarmos a ela, há uma vida a examinar, um conjunto de ações que devemos ponderar como se fôssemos nós o juiz – não a própria morte, não qualquer deus. Não nos é dada, porém, toda a liberdade para decidir: a condenação de Ivan Ilitch é quase tão certa que até mesmo ele, juiz de longa carreira, parece incapaz de se conceder clemência.

“A história pretérita da vida de Ivan Ilitch era a mais simples e comum e também a mais terrível”, nos declara precocemente o narrador, numa de suas muitas frases certeiras. O que turva a dignidade dessa vida, dessa e de quase todas as outras que a cercam, é a hipocrisia. O protagonista pode merecer uma série de adjetivos lisonjeiros ao longo da narrativa, é capaz, sociável, decente, mas tais atributos não passam, logo percebemos, de uma discreta conveniência. Não é movido pela ética que ele toma decisões razoáveis, e sim pela disposição de seguir convenções e agradar aos superiores para galgar uns degraus a mais em sua carreira. Da mesma forma, não é tomado por qualquer senso estético que ele se empenha em decorar sua casa: ainda que ele a veja como singular e bela, a casa não passa da imitação perfeita de outras casas, todas imitando-se a si mesmas. Na sociedade russa de fins do século XIX, naquela e em quase todas as outras sociedades que desde então conhecemos, a existência parece condenada de partida ao inautêntico, ao culto da ambição e das aparências.

E então, cindindo a novela em duas partes, rompendo do antes um inesperado depois, Ivan Ilitch depara com a morte. Do tédio que alguma vez o visitou, ou mais que tédio, da angústia insuportável que chegou a oprimi-lo por momentos, parece nascer agora um novo tipo de incômodo. Um incômodo que surge de um ponto incerto, e se desloca, e aumenta, e se transforma em algo mais que dor, num constante e irremissível peso. E de relance, quando talvez achasse que nada mais lhe restava ver, que o mundo tão repetido sequer merecia o exercício da contemplação, de relance esse sujeito vê se estilhaçar a falsidade e em seu lugar emergir uma verdade inescapável. De relance, num leal espelho, a única verdade possível: seu corpo a definhar, a dar o mais evidente testemunho de sua ruína, de seu fim iminente.

Esse espelho talvez tenha a virtude maior de toda verdadeira obra de arte, tal como uma vez a descreveu o próprio Tolstói: sua capacidade de comunicar uma verdade e de gerar em quem observa um estado de espírito singular, de criar nesse sujeito a ilusão de que ali estaria expresso tudo o que ele próprio um dia quis expressar. Sua vocação de provocar, assim, um poderoso contágio, a fusão mais completa possível entre artista e receptor, ambos agora libertados de seu isolamento. Seria esse espelho de que falávamos uma obra de arte, não estivesse Ivan Ilitch apenas diante de si, refém de seu destino irremediável, entregue à mais absoluta solidão – eis um ponto em que se distinguem arte e morte.

Que sua obra pertencesse à arte, e não às suas falsificações, que sua obra fosse mais que a imitação perfeita de outras obras, todas imitando a si mesmas – essa era uma das preocupações mais frequentes de Tolstói. Se a história provou que ele foi bem-sucedido nesse propósito, sobretudo neste livro que temos nas mãos, talvez tenha sido por sua capacidade de dar à arte o que é da morte. “Será somente ela a verdade?”, pergunta-se Ivan Ilitch, sua consciência consumida por completo por aquela ideia imperativa, obrigando-o a se concentrar nela e em nada mais. Será somente ela capaz de escancarar a falsidade que nos cerca, de denunciar a mentira amplamente aceita, de fazer de todo contato entre humanos uma mera visita convencional e solene?

Ivan Ilitch pensa na morte, fala da morte, é só a temida morte que o pode redimir. Quando enfim só lhe resta corpo, não mais pensamento, ele tem o rosto mais bonito e mais digno do que um dia chegara a ser – como é próprio dos defuntos, é o que o narrador nos diz. Tolstói não precisou da morte para se redimir: para o autor de Ivan Ilitch, bastou a arte para que se visse mais bonito e mais digno do que um dia chegara a ser. E nós, tomados pelo poderoso contágio, fundidos ao artista com todo o nosso ser, só podemos indagar se não recobraremos assim alguma dignidade perdida.

 

 

*JULIÁN FUKS é escritor e crítico literário. É autor de A resistência (2015), livro vencedor dos prêmios Jabuti, Saramago, Oceanos e Anna Seghers, e de A ocupação (2019), entre outros. É mestre em Literatura Hispano-Americana e doutor em Teoria Literária pela USP. Livros e textos seus já foram traduzidos para nove línguas e publicados em diversos países.

 

Posfácio 03

 

Liev Tolstói: entre o artista mundano e o guia espiritual

por Lucas Simone*

“Tolstói é o maior prosador russo. Deixando de lado seus precursores Púchkin e Liérmontov, podemos relacionar os maiores autores russos em prosa da seguinte forma: primeiro, Tolstói; segundo, Gógol; terceiro, Tchekhov; quarto, Turguêniev. Isso é muito semelhante a dar notas nos exames dos estudantes, e sem dúvida Dostoiévski e Saltykov estão esperando do lado de fora de meu escritório para discutir seus maus resultados.”

A afirmação é do famoso escritor Vladímir Nabókov – numa das palestras que proferiu em universidades americanas, entre os anos 1940 e 1950 – e pode soar inteiramente absurda ao leitor brasileiro, acostumado que está (ao menos nas últimas décadas) a ver em Dostoiévski o maior nome da literatura russa. De fato, para além das fronteiras da Rússia, criou-se algo semelhante a uma rivalidade entre os dois grandes escritores Tolstói e Dostoiévski, uma rixa um tanto anacrônica, na qual o autor de Crime e castigo parece levar certa vantagem.

Porém, esse status sagrado que Dostoiévski granjeou, em nosso país e em outras bandas, pareceria um tanto exagerado aos russos: para eles, quem aparece numa prateleira mais elevada é certamente Tolstói, na mesma estatura dos maiores escritores ocidentais. A esse respeito, o compositor Piotr Ilitch Tchaikóvski escreveu, em 1886:

“Li A morte de Ivan Ilitch. Mais do que nunca, estou convencido de que, dentre todos os escritores que já existiram em qualquer lugar e em qualquer época, o maior é Tolstói. Só ele já seria o bastante para que o homem russo não abaixasse envergonhado a cabeça quando enumerassem diante dele todas as coisas grandiosas que a Europa deu à humanidade”.

De fato, o conde Liev Nikoláievitch Tolstói (1828-1910) conquistou renome internacional e virou sinônimo de prosa caudalosa e elegante. Autor colossal de livros colossais, ele fez mais do que pôr a Rússia em pé de igualdade com seus refinados vizinhos ocidentais: tornou-se a face do país, a mais bela chave de compreensão daquele enigmático e indômito gigante eslavo. Ler Tolstói é ler a própria Rússia. Então, se quisermos decifrar o grande escritor, é imprescindível saber um pouco da história de seu país ao longo do efervescente século XIX.

A Rússia e sua história pendular

Não é de todo surpreendente que a Rússia possua um ar tão misterioso ao público brasileiro: o currículo escolar de História, no ensino fundamental ou médio, traz pouca ou nenhuma informação a respeito do país, até alcançarmos mais ou menos o fim do século XVIII. Por isso, é com certa perplexidade que observamos, em nossos manuais didáticos, um inflamado Napoleão Bonaparte conduzir, em 1812, a Grande Armée – a principal potência bélica de então, com mais de seiscentos mil homens – através de planícies, pântanos e densas florestas até a centenária Moscou, que, embora não mais a capital do Império Russo, era ainda seu coração e sua alma. No entanto, o que os franceses encontraram ali foi uma enorme desolação: seguindo a tática de terra devastada, os russos atearam fogo à própria cidade, deixando de mãos vazias o exército napoleônico. Após um mês de impasse, Napoleão se viu forçado a recuar, e, no retorno à França, centenas de milhares de soldados morreram de frio ou inanição.

Com uma contextualização assim superficial, a invasão napoleônica pode parecer algo tão extravagante quanto Aníbal atravessando os Alpes com seus elefantes para atacar os romanos durante as Guerras Púnicas. Mas, no fim da chamada Idade Moderna, esse tipo de campanha era comum no cenário europeu, e os próprios russos já haviam lutado nas regiões centrais e meridionais do continente. O Império Russo se tornara uma importante personagem das disputas internacionais, digladiando-se constantemente com os otomanos, ao sul, e partilhando a Polônia com a Prússia, a oeste. O que tornou memorável o evento de 1812 foi o improvável êxito russo, e o início do declínio de Napoleão. A Rússia, por outro lado, emergiu do conflito como protagonista, como bastião do Antigo Regime. Não à toa, o ano de 1812 tornou-se símbolo do orgulho nacional, e os russos até hoje se referem ao embate como a Guerra Patriótica.

Uma reviravolta tão grande no destino do país não deixaria de ter seu impacto na mente e no coração das gerações seguintes. Na juventude, Tolstói era absolutamente fascinado pelas histórias daquele período, e é desnecessário dizer que veio dali toda a inspiração para seu clássico Guerra e paz. Mas o choque com as forças napoleônicas e as diversas empreitadas militares no exterior tiveram também um efeito colateral indesejado pelo regime tsarista: o influxo de ideias revolucionárias e o subsequente surgimento de uma oposição ocidentalizada dentro da Rússia. Nesse sentido, é emblemático o mês de dezembro de 1825, quando, após a morte do tsar Alexandre I, oficiais de baixa patente reuniram-se em diversas manifestações de caráter heterogêneo e pautas um tanto difusas – embora no geral progressistas. Chamados posteriormente de dezembristas, graças ao mês em que se insurgiram, eles tinham algo em comum: exigiam que o trono fosse assumido por Konstantin, o sucessor legítimo. Este, porém, desinteressado no comando do país, cedeu o posto ao irmão Nicolau, que desbaratou o movimento, puniu os revoltosos e reinou com mão de ferro por trinta anos, orientado pela ideologia oficial da “Ortodoxia, Autocracia, Nacionalidade”, de tendência centralizadora e autoritária. Foi nesse ambiente de repressão e censura que a geração de ouro da literatura russa floresceu, com Púchkin, Liérmontov e Gógol definindo os caminhos seguidos por todas as futuras gerações de escritores no país.

Mas, no início da década de 1850, o cenário político europeu havia se transformado sensivelmente, e a Rússia se viu envolvida num conflito amplamente desvantajoso contra uma coalizão formada por Turquia, Inglaterra e França. A Guerra da Crimeia, na qual o jovem Tolstói serviu como cadete, durou pouco menos de três anos e resultou em derrota humilhante para o Império Russo, com perdas territoriais e abalo do poderio bélico. Mais uma vez em sua história, o país demonstrava certo atraso em relação à Europa, e o modelo autocrático, triunfante poucas décadas antes, agora parecia ter atingido seu limite. Nicolau falecera um ano antes do fim do conflito, dando lugar a seu filho Alexandre II. O novo tsar, obedecendo certa tendência pendular na história russa, buscou uma direção oposta àquela seguida por seu antecessor: realizou as chamadas Grandes Reformas, uma série de profundas transformações na sociedade e no aparato estatal da Rússia. A primeira e mais famosa delas foi a abolição da servidão, em 1861, mas houve ainda mudanças na educação, no Exército, na administração rural e urbana e no sistema judiciário – este último se faz presente na narrativa sobre Ivan Ilitch, que Tolstói retrata como representante da nova ordem jurídica russa, pautada em modelos ocidentais.

As flutuações da história russa, porém, não terminariam tão cedo. As reformas, ainda que profundas, não resolveram as principais contradições do país, e a oposição ganhou força e se radicalizou ao longo do reinado de Alexandre II. A culminação desse processo se deu em 1881, quando o tsar foi morto num atentado a bomba organizado por membros do grupo revolucionário Vontade do Povo. O regicídio acabou por endurecer o tsarismo, e o reinado seguinte, de Alexandre III (que durou de 1881 a 1894), retomou, ainda que de maneira mais tímida, as premissas de Nicolau I. Por um lado, promoveu-se uma forte política de russificação e de repressão a minorias étnicas; por outro, a Rússia voltou a se aproximar da França e perseguiu uma política externa mais conciliadora.

Em 1894, com a morte de Alexandre III, subiu ao trono Nicolau II, nome esse já bastante conhecido do público brasileiro. O último imperador russo conduziu duas guerras malogradas (a Guerra Russo-Japonesa e a Primeira Guerra Mundial), introduziu a monarquia constitucional, depois da Revolução de 1905, e abdicou no fatídico ano de 1917. Foi também em seu reinado que certo ancião de 82 anos – conhecido mundialmente pelos volumosos romances e pelos rígidos princípios filosóficos e religiosos – decidiu sair em peregrinação pela velha Rússia, apesar da saúde frágil. Na estação de Astápovo, cerca de trezentos quilômetros ao sul de Moscou, nas profundezas da Rússia, chegou ao fim a vida de Liev Nikoláievitch Tolstói.

Um escritor em busca da verdade

Assim como a história de seu país, a longa vida de Liev Tolstói foi também pendular: caracterizou-se por idas e vindas, por oscilações extremas em sua visão de mundo e em sua atitude em relação à própria atividade artística. É testemunha disso a imensa e diversificada obra legada por ele, que compreende, além dos famosos romances e novelas, milhares de cartas, obras pedagógicas e filosóficas, textos de crítica literária e até uma valsa. A proverbial verve literária russa parece de fato ter encontrado no conde Tolstói sua mais refinada e fecunda personificação.

Liev Nikoláievitch Tolstói nasceu no dia 9 de setembro de 1828 em Iásnaia Poliana, propriedade rural da família, situada no centro da Rússia Europeia. Seu pai foi o conde Nikolai Ilitch Tolstói, e sua mãe, a princesa Maria Nikoláievna Volkónskaia, pertencente a uma família nobre ainda mais antiga que a do marido. O clã Tolstói remonta ao fim do século XVII, enquanto os Volkónski tinham suas origens no escandinavo Riúrik, o lendário fundador da Rússia, cujos descendentes foram a primeira dinastia a governar o país. A intrincada árvore genealógica de seus antepassados, aliás, sempre fascinou Tolstói, que baseou diversas personagens de seus romances em parentes próximos ou distantes. Um dos casos mais curiosos é o do almirante Ivan Golovin, ancestral que Liev Tolstói e o grande poeta Aleksandr Púchkin tinham em comum: certamente não é por acaso que o protagonista de sua mais famosa novela se chame Ivan Ilitch Golovin.

De volta aos pais de Liev Nikoláievitch: casaram-se em 1822 e tiveram cinco filhos – Nikolai (1823–1860), Serguei (1826–1904), Dmítri (1827–1856), Liev e Maria (1830-1912). Ao que tudo indica, foi um casamento feliz, mas, ao dar à luz a filha, a princesa Maria Nikoláivena faleceu, e a criação dos cincos órfãos ficou a cargo de tias paternas e parentes distantes.

Nos anos 1840, Tolstói teve os primeiros contatos com a literatura: leu os clássicos russos – Púchkin, Liérmontov, Gógol –, mas também os Evangelhos, Rousseau, Schiller e Dickens. Deu ainda seus primeiros passos como escritor, esboçando versinhos e iniciando seu diário, que manteria durante toda a vida. Teve uma passagem breve e pouco digna de nota pela Universidade Imperial de Kazan, onde estudou letras orientais, durante um ano, e direito, por menos de dois anos, até desistir, em 1847. No mesmo ano, retornou à propriedade de Iásnaia Poliana, que lhe coubera como herança. Nos quatro anos seguintes, Liev Nikoláievitch Tolstói dividiu seu tempo entre a propriedade rural e as mesas de jogo de Moscou e São Petersburgo, onde perdeu somas consideráveis.

Em 1851, iniciou a composição da novela Infância e, influenciado pelo irmão Nikolai, viajou ao Cáucaso, considerando a possibilidade de ingressar no Exército, o que fez no outono daquele ano. Depois de concluir a novela, ele enviou o manuscrito ao poeta Nikolai Nekrássov, editor da revista literária Sovremiénnik (O contemporâneo), que leu a obra com entusiasmo. Publicada já em setembro de 1852, a novela foi extremamente bem recebida pelo público e rendeu a Tolstói o status de nova promessa da literatura russa.

No início do ano seguinte, porém, com o início da Guerra da Crimeia, Tolstói foi transferido para a região do Danúbio, onde permaneceu até novembro de 1854. De lá, foi enviado a Sevastópol, epicentro dos combates contra as forças estrangeiras. Mesmo em meio à luta, Tolstói seguiu escrevendo, e o conto “Sevastópol em dezembro de 1854”, publicado novamente pela revista Sovremiénnik, causou grande impacto em todo o país, graças à vividez com que o autor descreveu a defesa da cidade à beira do mar Negro. Além do êxito literário, Liev Nikoláievitch foi também condecorado diversas vezes, uma delas por bravura em combate. No entanto, após escrever uma canção que satirizava alguns de seus comandantes, ele teve que se retratar e foi enviado como correspondente a Petersburgo, onde publicou a versão completa de seus Contos de Sevastópol, em 1856. Em novembro do mesmo ano, deu baixa do Exército, como tenente.

Nos meses seguintes, em São Petersburgo, Tolstói viveu na companhia dos mais eminentes literatos da época, como Nekrássov, Gontcharov e sobretudo Turguêniev, com quem chegou a dividir um apartamento. Mas o temperamento volátil de Liev Nikoláievitch fez com que ele logo enjoasse daquele círculo, e, no início de 1857, o escritor fez sua primeira viagem à Europa, que tornaria a visitar entre 1860 e 1861. Somadas as duas ocasiões, esteve na França, Alemanha, Itália, Suíça e Inglaterra. Na segunda viagem, observou com atenção as novas tendências da educação pública, que mais tarde empregaria em suas escolas rurais. Foi também nesse período que seu irmão favorito, Nikolai, faleceu de tuberculose, quando estavam no sul da França. Tolstói sentiu imensamente aquela perda: na ausência dos pais, Nikolai fora, até então, seu principal conselheiro e confidente. No retorno à Rússia, encontrou um ambiente já menos amigável à sua figura e à sua prosa, ambiente que ele mesmo não se esforçava por desanuviar. Como se não fosse o bastante, envolveu-se numa discussão acalorada com Turguêniev, que por pouco não foi resolvida num duelo. Depois do episódio, a relação entre os dois escritores ficaria estremecida por quase duas décadas.

Em setembro de 1862, Tolstói casou-se com Sófia Andrêievna Bers, com quem passaria o resto da vida. A esposa teve um papel fundamental na criação das obras mais conhecidas do escritor, Guerra e paz e Anna Kariênina: ela atuou como sua secretária, copiando os manuscritos, editando e revisando os originais. Ademais, alguns elementos narrativos de Guerra e paz foram inspirados em Natacha, novela não publicada de Sófia Andrêievna, escrita poucos meses antes do casamento. Juntos, tiveram treze filhos, dos quais oito chegaram à idade adulta. Exceto pelo mais velhos deles, Serguei, todos emigraram após a Revolução de Outubro, a maioria para os Estados Unidos.

Se o entusiasmo da crítica pelo talento de Tolstói esfriara no início da década de 1860, ele retornou com força total entre 1865 e 1866, quando o periódico Rússki Viêstnik (O mensageiro russo) publicou, em folhetim, o texto à época intitulado O ano de 1805, que despertou vivo interesse no público. Entre 1868 e 1869, saiu em livro a versão completa, já com o título definitivo: Guerra e paz. O romance teve enorme sucesso de vendas e foi bem recebido também pela crítica, ainda que com algumas ressalvas. O mesmo Rússki Viêstnik publicaria, novamente em folhetim, entre 1875 e 1877, o romance Anna Kariênina, cujos capítulos eram aguardados com impaciência e lidos com sofreguidão.

A despeito da enorme fama como escritor e da feliz vida conjugal, Tolstói enfrentou uma aguda crise no fim dos anos 1870. Alguns traços da depressão que o acometera cerca de uma década antes se fizeram sentir novamente, e o escritor passou a ver pouco ou nenhum sentido em tudo que construíra. Em sua nova visão, a extensa obra que escrevera era frívola, superficial, distante da verdade, e a maneira como vivia era digna apenas de vergonha e arrependimento. A partir de então, a vida de Tolstói seria uma constante reavaliação espiritual e moral. Ele retomou as atividades de sua escola rural em Iásnaia Poliana, tornou-se vegetariano, começou a estudar teologia, travou conhecimento com seitas cismáticas russas – como os velhos crentes e os molocanos – e passou a questionar fortemente os dogmas da Igreja Ortodoxa. Com o intuito de conhecer melhor o cânone cristão, aprendeu grego antigo e hebraico, quase como autodidata, e traduziu os Evangelhos.

Tendo se tornado uma celebridade dentro e fora da Rússia, não surpreende que os novos princípios de Tolstói logo ganhassem notoriedade. Além de entusiastas de sua obra, o escritor passou a ter também discípulos fervorosos de sua doutrina moral e filosófica – o chamado tolstoísmo –, que consistia numa espécie de anarquismo cristão, pautado pela não violência e por uma quase completa negação dos bens materiais. Ressonâncias do Evangelho – sobretudo do “Sermão do Monte” – e de conceitos budistas, taoístas e confucionistas estão presentes em seus escritos filosóficos desse período, como Uma confissão, Em que consiste minha fé e O reino de Deus está em vós. Em termos propriamente literários, o primeiro texto a ser guiado por essa nova orientação foi A morte de Ivan Ilitch, publicado em 1886. Mas a essa derradeira fase de sua produção literária pertencem ainda diversos de seus textos mais célebres, como A sonata a Kreutzer (1891) e Ressurreição (1899), além de Padre Sérgio (1911) e Khadji-Murát (1912), ambos publicados de maneira póstuma.

Ainda que o conde Tolstói tenha conquistado uma legião de seguidores – até Mahatma Gandhi, com quem se correspondeu, foi pesadamente influenciado por sua doutrina – e tenha passado as últimas décadas da vida engajado em inúmeras obras de caridade e de educação popular, a relação com a família deteriorou-se bastante ao longo desse período, sobretudo com a esposa. Sófia Andrêievna não compartilhava dos ideais do marido, principalmente da decisão de abrir mão de seus direitos autorais e viver de maneira frugal, quase ascética. Papel decisivo nesse distanciamento teve o discípulo e protegido de Tolstói, Vladímir Grigórievitch Tchertkov, que assumiu as funções de revisor e editor de seus escritos, tarefa que até então era cumprida pela esposa. Embora tenha auxiliado muito na difusão da ideias tolstoianas no exterior, por exemplo coordenando a publicação de diversas traduções na Inglaterra, Tchertkov fez crescer o abismo que surgira entre Tolstói e seus familiares, chegando a sugerir que o escritor rompesse definitivamente relações com eles.

O século XX iniciou-se com uma nova controvérsia envolvendo o conde Tolstói. Após algumas décadas sem comungar, e tendo adotado uma postura crítica em relação ao cristianismo institucional, o escritor foi excomungado pelo Santo Sínodo – o órgão do Estado que respondia pelos assuntos da Igreja Ortodoxa. O processo conduzido pelas autoridades eclesiásticas foi acompanhado com ardor pelo público e com certa perplexidade pelo próprio Tolstói, que passou a receber cartas inflamadas, tanto de apoio como de reprovação, e até ameaças. Tolstói limitou-se a escrever uma “Resposta ao Sínodo”, na qual confirmava que de fato não fazia mais parte da Igreja, ao mesmo tempo em que reafirmava suas crenças e sustentava que suas motivações não eram aquelas apontadas pela resolução sinodal, já que ele jamais renegara Jesus: ao contrário, toda a sua obra recente buscava reencontrar a fé pura no Cristo.

Tolstói viveu sua vida quase inteira sob os olhos atentos do país, e sua morte não poderia ser diferente. Numa madrugada de outono, em 1910, decidiu abandonar sua casa em Iásnaia Poliana e ingressar num monastério. Saiu, então, acompanhado somente de seu médico, o eslovaco Dušan Makovický. Porém, depois de alguns dias fazendo pequenos percursos de trem, Tolstói começou a sentir-se mal, e Makovický, depois de constatar que se tratava de pneumonia, tentou levá-lo ao hospital mais próximo, mas conseguiu apenas instalá-lo na casa do chefe da estação de Astápovo, que fica a cerca de duzentos quilômetros a sudeste de Iásnaia Poliana. Tolstói faleceu no dia 20 de novembro de 1910, sem ter se arrependido formalmente perante a Igreja Ortodoxa. Mas, em sua busca pela verdade suprema, ele mesmo se tornou uma grande referência espiritual em todo o mundo.

A vida e a morte de Ivan Ilitch

A novela A morte de Ivan Ilitch foi publicada no ano de 1886, diretamente em livro, mas, assim como outras obras de Tolstói, ela vinha sendo amadurecida havia alguns anos. Ao que tudo indica, o escritor começou a trabalhar no texto em 1882, certamente inspirado na morte do procurador do tribunal regional de Tula, Ivan Ilitch Miétchnikov. Este falecera em junho de 1881, após padecer de uma grave doença não identificada. Seu irmão, o famoso biólogo Iliá Ilitch Miétchnikov, esteve com o moribundo em suas últimas horas e, sendo amigo de Tolstói, decerto lhe transmitiu as impressões daquele momento extremo. Anos mais tarde, em 1915, Iliá Ilitch escreveria que Tolstói dera a melhor descrição do medo perante a morte em toda a literatura. Embora a terrível doença do Ivan Ilitch real tenha sido definida pelo irmão cientista como uma infecção, de acordo com a moderna medicina os sintomas descritos à perfeição por Tolstói não deixam dúvida de que a causa mortis do Ivan Ilitch literário foi um câncer.

Tendo em mente o grau de publicidade obtido pela transformação espiritual de Tolstói, não espanta que as primeiras avaliações acerca da novela tenham sido bastante divergentes. Os adeptos do tolstoísmo, por um lado, viram na obra uma refinada expressão literária do pensamento de Liev Nikoláievitch; em contrapartida, a outra fatia do público demonstrou certa preocupação com o espaço cedido pelo Tolstói beletrista ao Tolstói filósofo moralista. De todo modo, a esse último grupo deve ter parecido reconfortante o fato de que A morte de Ivan Ilitch, no fim das contas, não era outro sermão ou confissão, e sim uma verdadeira e valorosa obra literária – ainda que evidentemente impregnada dos preceitos morais defendidos por Tolstói. Essa visão é bem sintetizada pelo crítico e escritor Vladímir Nabókov, que considerou impossível, em Tolstói, separar o artista do pregador; aqui, porém, “é o artista que está no comando. Essa novela é a realização mais artística, mais perfeita e mais sofisticada de Tolstói”.

Se a novela é intitulada A morte de Ivan Ilitch, ela poderia facilmente ser chamada também de A vida de Ivan Ilitch: embora a ação comece com o protagonista morto, o narrador logo recua no tempo e passa a contar tudo que ocorreu desde o nascimento de Ivan Ilitch Golovin. Aqui há um paradoxo apenas aparente, pois o intuito de Tolstói é precisamente dizer que a vida, tal como é vivida por seu personagem – sem qualquer propósito ou lastro espiritual, pautada apenas pelas ambições profissionais e pelos deleites do jogo –, equivale à morte. O inverso também é verdadeiro: o momento em que Ivan Ilitch, pouco antes de morrer, finalmente se compadece com o sentimento do filho e da esposa é o encontro com a vida verdadeira, com seu propósito e seu sentido mais elevado. Esse espelho, em que vida e morte se entrecruzam com suas imagens invertidas, é o que sustenta toda a narrativa.

Há outras contraposições muito claras, quase didáticas, que reforçam essa faceta doutrinadora da obra sem prejudicar seu aspecto artístico. Nesse sentido, a figura do mujique Guerássim é a que mais se destaca, em seu contraste com todos os demais personagens: estes, membros da alta sociedade urbana, viciada e corrompida por bens materiais; aquele, o camponês puro e compassivo, símbolo da superioridade moral do povo frente à aristocracia e à classe média russas. Guerássim, com sua simplicidade e altruísmo, é ainda o negativo dos colegas de trabalho de Ivan Ilitch, que discutem cargos e promoções minutos após tomarem conhecimento de sua morte, que mal demonstram interesse em comparecer ao funeral e que parecem muito mais preocupados com a partida de vint combinada entre eles. O mujique, por fim, é símbolo da natureza, do vigor que emana da vida autêntica, vivida do “jeito certo”, em oposição à falsidade e à hipocrisia de Ivan Ilitch, cuja vitalidade é perdida – como o autor e o protagonista sugerem – graças a uma futilidade: o tombo da escada, causado por um capricho, por uma teima com o tapeceiro que não instalara a cortina como ele queria.

A morte de Ivan Ilitch é, em algum nível, também a morte de Liev Tolstói. O escritor mundano, apaixonado pelo jogo e pela farra, envaidecido pela fama, encontra ali o seu fim simbólico, para renascer sob nova luz. Existem, evidentemente, elementos de continuidade entre as duas fases, mas é inegável que a obra literária de Tolstói tomou, a partir dali, um rumo distinto daquele que vinha seguindo até os grandes romances dos anos 1860–1870; no mínimo, adquiriu um novo tom. O que está acima de qualquer debate é o imenso legado de Tolstói para a literatura, atestado pelo entusiasmo com que é lido até hoje, pela atemporalidade de sua escrita. Quanto a A morte de Ivan Ilitch – ainda que a terminologia médica e a precariedade do tratamento da doença denunciem a época em que foi escrito –, decerto será lido e relido com o mesmo impacto de 120 anos atrás. Afinal, seu tema central – a morte – não deixará de nos assombrar e de nos inquietar enquanto a humanidade existir.

 

 

*LUCAS SIMONE é historiador formado pela FFLCH-USP e doutor em Literatura e Cultura Russa pela mesma instituição. Como tradutor, publicou textos de Maksim Górki, Anton Tchekhov, Fiódor Dostoiévski, Varlam Chalámov e Svetlana Aleksiévitch.

Posfácio 04

Ivan Ilitch e a morte nos séculos XIX e XX

por Maria Julia Kovács*

Em muitos aspectos, a obra de Tolstói sinaliza a passagem do século XIX para o século XX, como aponta o historiador Philippe Ariès. Mais do que isso, indica uma mudança na forma como a morte será encarada nos séculos XX e XXI. Durante muito tempo, a forma de lidar com o adoecimento e a possibilidade da morte era acompanhada por uma perspectiva chamada de morte domada, domesticada, familiar: era conhecida por todos e ocorria em domicílio. Muitas doenças não tinham cura, e a presença de certos sintomas, além da piora do quadro do enfermo, indicavam a proximidade da morte; era uma morte anunciada, e as pessoas tinham espaço para manifestar seu pesar, tristeza ou outros sentimentos que se fizessem presentes, compartilhando-os com as pessoas próximas, inclusive crianças.

Uma das características da morte domada é ser um evento social e público. A comunicação é um elemento essencial nessa perspectiva, tendo o enfermo o espaço central, rodeado pelos familiares, vizinhos, conterrâneos, a depender de sua posição social e econômica. Por sua vez, os pobres e indigentes não tinham essa possibilidade, por vezes sem direito ao ritual proposto para os que morriam. Eles tinham como destino valas comuns, gavetas coletivas que existem nas paredes dos cemitérios. Estavam num contexto em que a morte é aceita como parte da vida e, apesar da tristeza ou da raiva que o acontecimento provocava, não cabia ao ser humano se contrapor a ele. Em histórias, lendas e fábulas, o ser humano tenta combater a morte, que pode aparecer com vários disfarces – mas ela sempre fez e fará parte da existência humana.

Quando se buscou conhecer cientificamente como ocorria a morte, houve a necessidade de afastar qualquer possibilidade de identificação pessoal. Esse distanciamento foi denominado como “a morte que vai se tornando selvagem” (termos de Ariès) e depois como morte invertida, por ter aspectos opostos à morte domada, ou morte interdita, a morte tabu, a morte da qual não se fala para não causar sofrimento, suja e vergonhosa, que deve ser oculta e solitária. Nesse contexto, muitos pacientes com doenças graves, sem possibilidade de cura, eram isolados para não “contaminar” as outras pessoas com seu sofrimento.

Do ponto de vista médico, a morte passa a ser vista como fracasso e a ser combatida a todo custo. Essa mentalidade é responsável por uma necessidade de prolongar indefinidamente a vida, ou qualquer simulacro dela, em um processo chamado distanásia. Nos dias de hoje, esse é o temor em relação ao final de vida, motivando pedidos de eutanásia e suicídio assistido em pessoas com doenças sem possibilidade de cura.

No século XX, duas autoras alteraram o silenciamento e o distanciamento da morte, trazendo o paciente com doença avançada para o protagonismo da cena. Elisabeth Kübler-Ross, psiquiatra, subverteu a ordem hospitalar de não falar com as pessoas com doenças avançadas, abrindo espaço para os enfermos se abrirem sobre seu sofrimento e suas prioridades no final de vida. Ela também influenciou os cuidados psicossociais a pacientes no contexto hospitalar.

Cicely Saunders, enfermeira inglesa, fundou em 1967 o St. Christopher’s Hospice em Londres, centro de referência em cuidados paliativos. No início dos trabalhos, a instituição se dedicava a oferecer dignidade na morte de pacientes com doenças avançadas, com cuidados nas esferas física, psíquica, social e espiritual. Os cuidados paliativos evoluíram no século XXI, passando a ser a abordagem oferecida a todos os pacientes que têm doenças que ameaçam a vida; seu objetivo principal é garantir qualidade de vida e alívio de sintomas, desde o diagnóstico. Os cuidados de final de vida podem proporcionar a morte com o menor sofrimento possível e com dignidade.

Tendo apresentado os retratos da morte nos séculos XX e XXI, vamos nos debruçar na obra de Tolstói, A morte de Ivan Ilitch, que aponta, no final do século XIX, o que estava por vir. O autor relata como a doença de Ivan causa medo, repugnância e uma aura de silêncio à sua volta quando a morte se aproxima.

O livro se inicia com o anúncio do falecimento de Ivan Ilitch no seu local de trabalho. Ao ouvir sobre sua morte, seus colegas especulam sobre quem assumiria o seu posto. Não se vê manifestação de tristeza ou de outros sentimentos. Tudo na vida de Ivan Ilitch era regido por protocolos, com economia de sentimentos, o que caracteriza uma forma, ainda presente em nossa cultura, de lidar com a morte e com questões emocionais. Na obra, a morte e o velório ocorreram em casa, uma morte domada, familiar, em que esses eventos ocorrem em domicílio. Entretanto, desde o início do texto se observa que, em vez de trocas afetivas, há distanciamento, protocolo no funeral. Atualmente, na mentalidade da morte interdita, observa-se frieza e também conversas e piadas, que retiram do velório o seu significado como oportunidade para despedidas dos familiares e amigos com o corpo ainda presente. Vê-se o encaminhamento para uma economia emocional, ligada à visão da morte como tabu.

Praskóvia Fiódorovna, a esposa, manifesta no velório sentimentos ambivalentes que acompanharam toda a vida do casal. O casamento de Ivan Ilitch com ela, salvo nas primeiras etapas, foi regido pelo protocolo e pelo distanciamento. O que fica patente é a não compreensão mútua vivida pelo casal, aumentando os sentimentos dolorosos. Mesmo quando Praskóvia Fiódorovna chora no funeral, é a manifestação de autopiedade, e não de sentimento pela perda do marido.

Segundo a teoria dual do luto, elaborada no final do século XX, para enfrentar uma perda significativa, há duas tarefas importantes a ser consideradas: a elaboração de sentimentos dolorosos e a readaptação à vida, agora sem a presença da pessoa amada. Para facilitar a elaboração do luto, é necessário ter espaço para sentimentos e para a adaptação à vida sem a pessoa perdida. É importante a permissão para expressar o luto pela pessoa e pela sociedade. Porém, as convenções do luto mostram que às mulheres é facultado um tempo maior para as lamentações, tristeza e outros sentimentos na situação da perda, e que aos homens cabe cuidar do velório e do enterro. Nesse contexto, podemos compreender a queixa de Praskóvia Fiódorovna de se sentir sozinha para assumir as providências do funeral e o pedido de ajuda ao amigo do marido.

Ivan Ilitch era o gênio da família, inteligente, vivaz, agradável, com uma trajetória profissional relevante. Concluiu seus estudos na escola de direito. Era cônscio de seus deveres e fazia tudo que se esperava dele. Tinha amigos e se divertia com eles, mas sempre com comedimento. Saía com muitas mulheres, mas não era criticado por esse motivo. Era apreciado e fazia tudo como deveria, “comme il faut”, uma preocupação sempre presente em sua vida, que inclusive levou a um casamento por conveniência.

A harmonia do casal é rompida com a gravidez. A esposa alegre e jovial começa a ter ciúmes. Cenas desagradáveis e grosseiras passam a ser frequentes. Ivan Ilitch então toma distância dessa situação e continua a viver de forma leve e agradável como até então. Foge das cenas cotidianas envolvendo os cuidados do filho pequeno, concentrando-se em seu trabalho no fórum. O casamento, conveniente para sua vida profissional, começa a ser um problema para sua vida pessoal, tornando-se uma relação de afetos negativos, com a comunicação truncada, sem respeito, sem compreensão mútua, que vai ter sérias consequências no processo de adoecimento de Ivan Ilitch e na dificuldade de Praskóvia Fiódorovna para cuidar do marido. Os valores e necessidades de cada um deles eram desrespeitados.

Na quarta parte, Tolstói passa a escrever sobre a doença de Ivan Ilitch, a questão principal da obra. Tudo começa com o incômodo que é atribuído a uma queda. Com o surgimento do mal-estar e dos sintomas, a tênue harmonia que havia entre o casal dá lugar a brigas, com poucos momentos de calma. Praskóvia Fiódorovna se queixa do gênio do marido, mas acredita que, como boa esposa, deve suportar tudo com benevolência e resignação. Esses sentimentos mistos são frequentes entre os cuidadores principais de doentes. Familiares precisam de cuidados, pois o seu sofrimento é também intenso, mas, muitas vezes, não os recebem, pois não se acreditam merecedores, tornando-se “pacientes ocultos”.

A dor de Ivan Ilitch se agrava, em uma doença que não chega a ser nomeada. Pela característica de evolução, supõe-se que seja câncer. As representações sociais dessa doença a mostram como invasiva e traiçoeira, e ainda hoje muitas vezes é referida como “aquela doença”. No imaginário de muitas pessoas, é acompanhada de uma morte com dor e sofrimento. É exatamente o que acontece com Ivan Ilitch, que, angustiado, procura solitariamente a resposta para o seu sofrimento. Passa por vários médicos, mas nenhum conversa com ele, não prestam atenção em suas questões, angústia e medo. Os profissionais mantêm uma atitude paternalista, de acordo com a qual o médico tem o conhecimento e o paciente deveria se submeter, sem perguntar nada. Ivan Ilitch queria saber se ia morrer. Para o médico, essa era uma questão sem interesse. Vemos aqui o que afirmamos no início deste texto: ao médico, a morte não interessa, além de ser algo que confronta sua onipotência. Segundo Ariès, uma morte que era familiar e conhecida, a morte domada, no século XX foi se tornando selvagem, e por fim se alcançou uma compreensão equivocada de que o assunto deve ser combatido ou ignorado.

Como Ivan Ilitch não tinha respostas e se sentia muito mal, entendeu que estava à beira da morte. A obra revela o quanto nenhum dos personagens escuta o que o outro tem a dizer nem consegue falar o que é necessário. Uma comunicação inefetiva não permite a escuta e não responde às perguntas mais importantes, causando ainda mais sofrimento. Os médicos não transmitem a má notícia do agravamento da doença e da aproximação da morte, o que causa incerteza, isolamento, angústia e medo.

Ivan Ilitch queria falar de sua doença, de seu medo, mas os familiares só apontavam que não era grave e que bastaria tomar os remédios. Essa resposta, longe de acalmá-lo, gerava mais insegurança. A doença provoca no paciente um movimento de interiorização, que faz com que examine o tempo todo seus sintomas, seu corpo, sua doença. Há um elemento saudável nesse voltar para si, que é o autocuidado e o atendimento de suas necessidades. Esse cuidado pode, em alguns casos, salvar a vida, mas excessos podem colocar o paciente em risco de morte. As brigas domésticas e do trabalho causavam mais dor e sofrimento. A raiva intensa de Ivan Ilitch o corroía por dentro. Muitos pacientes sentem raiva por estarem doentes. Essa raiva, que às vezes não tem como ser expressa, é dirigida àqueles que estão saudáveis. Familiares e profissionais que recebem essa raiva também sentem raiva do paciente, que, em vez de agradecer pelos cuidados, os confronta. Cria-se um círculo de incompreensão, frustração e incompetência. O resultado é um isolamento que, além de trazer mal-estar ao paciente, pode levar familiares e profissionais a adoecer. Familiares se sentem culpados e culpam o paciente pela sua doença.

Praskóvia Fiódorovna considera que Ivan Ilitch é culpado pela sua doença, pela sua não melhora. Essa visão de culpa do paciente, traduzida como “a pessoa fez o seu câncer”, imperou nessa doença. A escritora Susan Sontag, em seu livro Doença como metáfora, aponta que pacientes com câncer, além de sofrer com os sintomas da doença, ainda têm que suportar a ideia de serem responsáveis e culpados pelo seu adoecimento. Sontag, como paciente com câncer, apresentou críticas contundentes em relação a esse ponto de vista. O câncer é um nome genérico a várias enfermidades com diversos graus de manifestação, e, embora aspectos pessoais, de personalidade e modos de enfrentamento possam influenciar, certamente não são os causadores da doença.

Os sintomas da doença de Ivan Ilitch eram degradantes; ele ficava cada dia mais débil e fraco. Os sintomas o faziam prever uma morte igualmente repugnante. Cada vez mais ele se sentia um estorvo. Sem o apoio de ninguém, sentia-se só com suas dores, sendo a única pessoa próxima Guerássim, um homem simples e carinhoso. Observamos uma rica descrição fenomenológica do diagnóstico de uma doença sem nome, do sofrimento, de não ser compreendido, de se sentir mal 24 horas por dia, sem ninguém que pudesse ajudar, escutar, entender o que Ivan Ilitch estava vivendo, ou ter paciência para deixá-lo falar. É o retrato da solidão, do desamparo vivido por pacientes gravemente enfermos, o retrato da morte interdita, em que o sofrimento agride o entorno e deve ser silenciado.

Um médico disse a Ivan Ilitch que seu problema era no intestino e que poderia ser curado. Esse diagnóstico o acalmou. É interessante observar que, quando há uma conversa com o médico, em vez de um diagnóstico frio, o paciente se sente melhor, com mais esperança. Ivan Ilitch passou a fazer uma visualização do intestino cumprindo suas funções, e assim imaginou que se sentia melhor. Ele estava utilizando um processo que, na década de 1970, o radiologista Carl Simonton desenvolveu com o nome de “visualização” e utilizou em pacientes oncológicos. A proposta é que se realize a visualização do sistema imunológico atuando sobre células neoplásicas, fortalecendo com a imaginação ativa o processo de destruição das células anormais, reforçando também a ação dos tratamentos.

Por sua vez, quando Ivan Ilitch não conseguia mais fazer as coisas sozinho, numa clara situação de dependência, passou a desejar morrer imediatamente. Esse é um pensamento comum quando a doença provoca sofrimento e incapaci- dade, e a raiva dificulta a possibilidade de receber carinho. Para muitas pessoas, a dependência em vida é pior do que a pró- pria morte. Dependendo de como os cui- dados são oferecidos, mais do que amor, eles geram a sensação de submissão e fraqueza. Essa parecia ser a vivência de Ivan Ilitch.

Segundo Kübler-Ross, passamos por vários estágios no processo de morte, que podem ajudar profissionais e fami- liares a sintonizar com o que os doentes vivem quando sofrem com a doença e percebem que a morte se aproxima¹. Ivan Ilitch sentia muita raiva, ressentimento e injustiça porque estava morrendo. Os mecanismos que antes afastavam os pensamentos de morte agora não mais surtiam efeito. Continuava trabalhando, para não pensar na doença, mas a dor torturante o perturbava. Antes correto e disciplinado em suas decisões, ele agora cometia erros que todos percebiam. O pensamento sobre a morte não dava trégua, não admitia distração, invadia constantemente seu pensamento.

Depois de três meses da doença, Ivan Ilitch percebia as pessoas calculando o tempo que ele ainda viveria. Os colegas do tribunal queriam que ele desocupasse o posto e conjecturavam sobre quem seria o sucessor. Os familiares queriam se livrar de ver o sofrimento de Ivan Ilitch. Essa é uma percepção de pacientes que já se sentem desinvestidos e descartados, como se estivessem mortos em vida. É natural que desejem morrer, surpreendendo familiares e profissionais.

Com o avanço da doença, Ivan Ilitch passou a receber ópio e morfina para aliviar a dor. A melancolia ocupava o espaço de ser. A comida, que sempre fora um grande prazer em sua vida, tornou-se insípida e causava enjoo; ele já não sentia prazer com nada. Seu corpo provocava repugnância a ele e a todos, não tinha mais controle nem para as atividades cotidianas como a evacuação.

É nessa situação de dor e decadência que Guerássim, o serviçal doméstico, tem um papel importante. Era um jovem alegre, simples, que realizava as tarefas de cuidado íntimo de Ivan Ilitch com tranquilidade, ocupava o lugar com sua presença sem ofender o doente, que sentia vergonha de sua degradação.

A saúde, a força, o vigor das pessoas à volta ofendiam Ivan Ilitch, mas o vigor e juventude do serviçal o tranquilizavam. O jovem conversava com Ivan Ilitch com sinceridade e simplicidade, enquanto os familiares mantinham a “conspiração do silêncio”, a tentativa de poupar o sofrimento. Essa situação acaba gerando insegurança, medo e dúvidas. Ivan Ilitch participava dessa conspiração, mas ficava irado com a falta de sinceridade da família. Mas será que queria saber da verdade? Ou precisava ser ouvido, se lamentar e ser acolhido?

 

No final do século XIX, não havia programas de cuidados paliativos, e Ivan Ilitch sentia dores terríveis que não o abandonavam, o que gerava muita angústia. A morte temida era agora desejada, como alívio do sofrimento torturante. O seu corpo e espírito estavam se deteriorando, ele não reconhecia amigos, não conseguia olhar para o espelho. Os dias eram todos iguais, com dor, angústia e solidão. Queria pessoas próximas, mas elas o incomodavam muito.Tudo o agredia. A morfina era o seu bálsamo, porque diminuía sua consciência.

No final de vida o tempo adquire outra dimensão. Para Ivan Ilitch, as horas não passavam, havia a presença constante da dor. O fim se aproximava, mas não chegava. O tempo de alívio era quando conseguia dormir. Ivan Ilitch fez então um retrospecto de sua vida, tentando lembrar os momentos agradáveis e felizes, mas não os encontrou mais. Esse retrospecto tão importante sobre a vida vivida trouxe para Ivan Ilitch o retrato de uma existência sem alegrias ou realizações significativas, mais um fator de desespero. O trabalho trouxera alguns bons momentos, efêmeros. O casamento só trazia mágoa e ressentimento. Estava pronto para morrer. Mas não morria. A pergunta recorrente era por que tinha que passar por todo esse sofrimento. Não recebia respostas. Acreditava ter vivido uma vida correta, mas não só vivia uma morte terrível do corpo, mas também da alma. Sentia-se totalmente sozinho e abandonado.

Nos momentos de grande desespero Ivan Ilitch questiona Deus pelo sofrimento, pela crueldade e pelo abandono. É frequente esse questionamento no final de vida. A doença e o sofrimento são vistos como um castigo pela vida vivida. Muitos pacientes com doença avançada questionam Deus sobre o motivo do seu sofrimento, buscando amparo em questões espirituais. Essa dimensão precisa ser cuidada, segundo recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), e hoje é parte integrante dos cuidados aos enfermos e no final de vida.

Nas duas últimas semanas, Ivan Ilitch ficava deitado com o rosto virado para a parede sem querer ver ninguém e sem encontrar respostas para suas perguntas. Alternava entre o desejo de morrer para acabar com o sofrimento e o de continuar vivendo sem sofrimento, o que não era possível. Essa alternância entre o desejo de viver e de morrer é presente em pacientes no final de vida. O que parece muito difícil no caso de Ivan Ilitch é que ele não parecia sofrer por deixar a família ou o trabalho. Não conversava com ninguém e também não se observa o que chamamos de legado ou testamento, em que são distribuídos os bens materiais e também os desejos e recomendações às pessoas próximas. Não há despedidas nem pedido de perdão, tão importantes no final de vida. Ele estava completamente só, centrado em si, num processo egocêntrico, sem encontrar sentido em nada do que fizera na vida.

Esse tempo de sofrimento torturante teve a duração de três meses. Acompanhando o texto, parece muito mais tempo. O tempo cronológico é diferente do tempo kairós, que é subjetivo, não se mede por calendários ou relógios. Para Ivan Ilitch o tempo entre a primeira consulta e o final é muito longo. Ele sentia solidão no meio de todos, vivia no passado, com lembranças de várias épocas, mas que não traziam paz, e sim confusão. Começou a ter alucinações envolvendo sua trajetória em direção à morte, como se estivesse voando. Essas alucinações, acompanhadas de confusão mental e agitação, ocorrem para alguns pacientes com doença avançada e são sinalizações de que a morte está se aproximando.

Ivan Ilitch queria explicação para a morte – por que aquilo estava acontecendo com ele, por que não podia ter serenidade? Eram perguntas difíceis, mas o que chama atenção é que ele não conseguia conversar com ninguém sobre o assunto. Esse é um tema-chave desta novela. Não havia diálogo com familiares, amigos, médicos, atendentes espirituais, com ninguém. Em vez de comunicação, havia tortura, culpabilização e ressentimento.

O último médico consultado percebe que o maior sofrimento de Ivan Ilitch não era físico, e sim moral. Mas o que poderia ser feito era possibilitar que Ivan Ilitch falasse sobre essas questões. Parecia pouco provável que houvesse reconciliação entre Ivan Ilitch e Praskóvia Fiódorovna, mas eles poderiam, pelo menos uma vez, falar honestamente sobre os sentimentos de cada um, numa tentativa de compreensão do ponto de vista do outro, com empatia, mesmo que fosse somente no final da vida. Essa tentativa de aliviar o sofrimento do casal poderia trazer paz no último momento de vida de Ivan Ilitch e ajudar no processo de elaboração do luto de Praskóvia Fiódorovna.

O fim da novela é torturante também para o leitor, que pensa que esse sofrimento precisa cessar. No final, os gritos de Ivan Ilitch ressoavam por toda a casa. Por que o deixaram por três dias gritando e se debatendo, sem se entregar à morte? Se fosse um animal, teria direito à eutanásia?

No último momento da vida de Ivan Ilitch, o filho entra e há momentos de calma. Ivan Ilitch pode percorrer com o olhar a cena e por um breve instante olhar para o sofrimento do filho e da esposa. Vê o desespero para além de si e liberta os outros e a si próprio. Entrega-se à morte. Seria a aceitação? Talvez a morte não lhe pareça mais tão assustadora.

Tolstói nos apresenta uma descrição em profundidade do adoecimento de um homem comum e de sua aproximação da morte, como se estivéssemos no corpo de Ivan Ilitch. Um homem só, rodeado de pessoas que, embora fossem família, estavam distantes. É o retrato da morte solitária, sem cuidados, um prenúncio do que passaria a ocorrer com alguns pacientes no século XX.

A morte de Ivan Ilitch traz elementos da morte domada, que ocorre no domicílio, com a presença da família. Mas a obra anuncia uma nova mentalidade, que vai estar presente a partir do século XX: a morte suja, degradante, da qual não se pode falar; a morte interdita.

 

*MARIA JULIA KOVÁCS é professora livre-docente sênior do Instituto de Psicologia da USP, membro-fundador do Laboratório de Estudos Sobre a Morte e coordenadora do projeto Falando Sobre a Morte: Filmes Didáticos.

¹ Os estágios são: negação, raiva, barganha, depressão, aceitação. Eles podem ocorrer em diversas sequências e nem todos serão vividos pelos pacientes. Ver Kübler-Ross, Sobre a morte e o morrer, 1969.

Referências

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_____ A roda da vida. São Paulo: Sextante, 1997. 

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PESSINI, L. Distanásia: até quando prolongar a vida? São Paulo: Editora do Centro Universitário São Camilo/Loyola, 2001.

SONTAG, S. Doença como metáfora. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

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