Olá, antofagense!
Nesta página, você tem acesso ao poema “O navio negreiro”, de Castro Alves, com sua estrutura de versos e estrofes, sem as intervenções artísticas de design do livro O navio negreiro e outros poemas, publicado pela Antofágica em 2022.
O texto a seguir foi estabelecido de acordo com as mesmas referências do nosso livro físico: o segundo volume das Obras completas de Castro Alves, organizado por Afrânio Peixoto, publicado pela Francisco Alves, no Rio de Janeiro, no ano de 1921 e digitalizado pela Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da Universidade de São Paulo (USP), e, nos casos de dúvidas, consultamos a terceira edição da Obra completa organizada por Eugênio Gomes e publicada pela Nova Aguilar, no Rio de Janeiro, em 1976. A ortografia foi atualizada, mas mantivemos a grafia original nos casos em que ela é importante para a métrica.
Boa leitura!
Editores de Antofágica.
O navio negreiro
Tragédia no mar
I
‘Stamos1 em pleno mar... Doudo2 no espaço
Brinca o luar – d ourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba3 de infantes4 inquieta.
‘Stamos em pleno mar... Do firmamento5
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias6,
– Constelações do líquido tesouro...
‘Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dois é o céu? qual o oceano?...
‘Stamos em pleno mar... Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue7 corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga8 as andorinhas...
Donde vem? onde vai? Das naus9 errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste Saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.
Bem feliz quem ali pode nest’hora
Sentir deste painel a majestade!...
Embaixo – o mar... em cima – o firmamento...
E no mar e no céu – a imensidade!
Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!
Homens do mar! Ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela10 acalentara
No berço destes pélagos11 profundos!
Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia...
Orquestra – é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
• • •
Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido12 poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar – doudo cometa!
Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviatã13 do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.
II
Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina14
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena15
Saudosa bandeira acena
Às vagas que deixa após.
Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor16,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas17 em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
– Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso18,
Junto às lavas do vulcão!
O Inglês – marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha19 ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson20 e de Aboukir...
O Francês – predestinado –
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!
Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia21 criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses22 cortou,
Homens que Fídias23 talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu!...
III
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu ali... Que quadro d’amarguras!
É canto funeral!... Que tétricas24 figuras!...
Que cena infame e vil25 !... Meu Deus! meu Deus! Que horror!
IV
Era um sonho dantesco26 ... o tombadilho27
Que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras, moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que de martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
“Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!...”
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da roda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual num sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...
V
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co’a28 esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noite! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós,
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...
São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados29
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos...
Hoje míseros escravos30 ,
Sem ar, sem luz, sem razão...
São mulheres desgraçadas
Como Agar31 o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios32 passos,
Filhos e algemas nos braços,
N’alma – lágrimas e fel.
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Tem que dar para Ismael33.
Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram – crianças lindas,
Viveram – moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus...
...Adeus, ó choça34 do monte,
...Adeus, palmeiras da fonte!...
...Adeus, amores... adeus!...
Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p’ra não mais s’erguer...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.
Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d’amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...
Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm’lo35 de maldade,
Nem são livres p’ra morrer...
Prende-os a mesma corrente
– Férrea, lúgubre serpente –
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte36
Ao som do açoite. Irrisão37!...
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
VI
Existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia38!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante39 fria!
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea40 tripudia?
Silêncio, Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!
Auriverde pendão41 de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte42 que à luz do sol encerra
As promessas divinas da esperança.
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto43 na batalha,
Que servires a um povo de mortalha44!
Fatalidade atroz45 que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo46 abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais!... Da etérea47 plaga48
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada49! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!
- Forma reduzida de “Estamos”. Trata-se de um recurso para manter a regularidade métrica da estrofe.
- Doido.
- Multidão.
- Em Portugal e na Espanha, filho de reis que não é herdeiro do trono.
- Céu.
- Ondas elevadas.
- Tipo de navio que tem dois mastros com velas redondas e cestos de gávea.
- Espaço.
- Navios.
- Tempestade marítima.
- Abismos.
- Assustado, apavorado.
- Monstro marinho bíblico.
- Corta-vento.
- Vela quadrangular.
- Abatimento.
- Natural de Andaluzia, na Espanha.
- Torquato Tasso, poeta italiano que escreveu A Jerusalém libertada em 1580. O célebre poema aborda o combate entre cristãos e mouros durante o Cerco de Jerusalém, em 1099.
- Referência ao Canal da Mancha, que separa Grã-Bretanha e França.
- Horatio Nelson, comandante da esquadra inglesa responsável pela vitória contra as forças napoleônicas durante a Batalha de Aboukir, em agosto de 1798.
- Costa sudoeste da Anatólia, atual Turquia.
- Herói do poema épico Odisseia, de Homero. Também chamado de Odisseu, Ulisses participou da Guerra de Troia, conforme a Ilíada, do mesmo autor.
- Escultor da Grécia Antiga.
- Medonhas, aterradoras.
- Desprezível.
- Referência a Dante Alighieri, escritor, poeta e político italiano.
- Em náutica, o mesmo que castelo de popa. Estrutura fechada de uma borda à outra.
- Forma reduzida de “Com a”.
- Pintados, malhados.
- Atualmente, recomenda-se o uso do termo “escravizado” no lugar de “escravo”. O primeiro denota uma condição à qual alguém foi forçadamente submetido, enquanto o segundo denota uma condição natural, o que não condiz com a exploração de seres humanos. Na época de Castro Alves, essa distinção não era feita, por isso o termo “escravo” era corrente.
- No livro de Gênesis, Agar foi serva de Sara, esposa de Abraão. Como Sara era estéril, Abraão pôde gerar, com Agar, um herdeiro.
- Fracos, sem vigor.
- Primeiro filho de Abraão e Agar.
- Casebre.
- Forma reduzida de “cúmulo”.
- A rigor, tropa. No texto, em sentido figurado, conjunto dos escravizados.
- Escárnio.
- Covardia.
- Referência à tragédia grega As bacantes, de Eurípedes. Na obra, as bacantes são devotas do deus grego Dionísio (na mitologia romana, Baco).
- Plataforma dos mastros dos navios.
- Bandeira.
- Símbolo de uma nação.
- Caído.
- Tecido que envolve o morto.
- Desumana.
- Cristóvão Colombo, navegador genovês e comandante da frota espanhola que chegou às Américas em 1492.
- Volátil, relativo a éter.
- Região.
- José Bonifácio de Andrada e Silva, conhecido como “patriarca da Independência”. Naturalista, jurista e estadista.