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MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS

Machado de Assis

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APRESENTAÇÃO

Isabella Lubrano

Minha primeira leitura de Memórias póstumas de Brás Cubas teve sabor de rebeldia.

Não foi de uma edição caprichada, como esta que você tem em mãos, e que tive a oportunidade de acompanhar desde a gestação até o nascimento.

Era um livrinho sujo que um dia pertencera à biblioteca de uma escola — tinha carimbo e tudo. As páginas estavam manchadas de tinta de caneta e gordura; a fonte era minúscula, uma tortura até para a vista de uma adolescente; a capa e a contracapa tinham dobras enormes — na certa feitas por algum aluno inconformado com a obrigação de ler “aquele negócio”.

Teoricamente, eu já não fazia mais parte dessa turma. Tinha dezoito anos e já cursava a faculdade de Direito. Tinha deixado para trás a escola e o vestibular e, com eles, o dever de ler os clássicos nacionais, o que era considerado enfadonho até para mim, que sempre gostei de livros

Mas ao comprar aquela edição puída, num sebo ainda mais puído no centro da cidade, eu me rebelava contra minha nova vida: uma vida cheia de tratados intermináveis, jurisprudências arrogantes, processos kafkianos, súmulas estúpidas e latinismos cafonas.

Rebelde, montei minha barricada com o que acreditava ser literatura “de verdade”. Percorri os sebos da cidade em busca de leituras excitantes, que zombassem da ordem das coisas, invertessem o sentido das vias.

Machado de Assis ressurgiu para mim não mais como aquele que eu considerava um aborrecido escritor de fala pomposa nos tempos do colégio.

Comecei a enxergá-lo como o gênio que foi. Um profundo investigador dos revezes humanos, que ele revestia da mais fina ironia e, por que não dizer, do mais autêntico deboche.

Sempre que releio Memórias póstumas, descubro em novos detalhes a mediocridade do sinhozinho Brás Cubas, a tolice de seu emplasto miraculoso, as canalhices contra mulheres e amigos que passaram por sua vida, o desejo de ser lembrado como um grande homem. Não dá para deixar de lado a sensação de que Machado de Assis, um neto de escravos, gago e epilético, agregado em casa de fidalgos, escreveu este livro com um sorrisinho no canto da boca.

Mas nem todo rebelde sabe manejar suas armas, e minha revolução falhou. Mesmo sedenta por novas aventuras literárias, não consegui terminar a leitura de Memórias póstumas na primeira tentativa.

Em minha defesa, suspeito que aquela edição carcomida por traças que comprei no sebo foi também um tanto responsável por minhas dificuldades iniciais.

Nesta aqui, da Antofágica, os únicos vermes que você vai encontrar são os das belas ilustrações de Candido Portinari. E também, provavelmente, nas carnes putrefatas do defunto autor.

Boa leitura!

*ISABELLA LUBRANOjornalista e bacharel em Direito pela USP. É também a criadora do canal Ler Antes de Morrer no YouTube, no qual publica resenhas sobre obras clássicas da literatura brasileira e internacional.

Posfácio 01

Sobre as ilustrações

por João Candido Portinari*

Já comecei a fazer o Brás Cubas. Fiz o plano e estou executando. Em vez de fazer vinhetas, fiz o retrato de cada personagem; ainda faltam alguns. Já gravei uma placa — gostaria que v. a visse, pois creio que progredi muito. Estou respeitando o texto — tenho estudado indumentária. Os retratos estou procurando dar um jeitão de gente que existiu mesmo.

Em carta dirigida ao amigo Mário de Andrade, Candido Portinari dá notícias do trabalho ora iniciado sob encomenda do empresário e grande mecenas carioca Raymundo de Castro Maia, para a recém-instituída Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil.

Inspirado em entidades europeias na área de edição de livros de arte, Castro Maya cria a Sociedade com o objetivo “de incrementar entre nós o amor aos belos livros”, publicando obras raras em edições de luxo e com tiragem limitada. Durante cerca de trinta anos foram editados 23 livros, e Portinari foi convidado para ilustrar o primeiro deles — Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Foram realizadas pelo artista, em 1942, sete águas-fortes originais e 74 desenhos reproduzidos em clichê.

O livro foi lançado, em grande evento, em 1944, no primeiro jantar da Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil, no Jockey Club, na cidade do Rio de Janeiro, no qual os originais das ilustrações foram exibidos, durante a tarde, para serem leiloados após o jantar.

A edição de Memórias póstumas de Brás Cubas, realizada com esmero e arte pela editora Antofágica, 75 anos após a publicação tão sofisticada e especialmente dedicada aos membros da Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil, possibilitará que mais brasileiros conheçam e possam apreciar a interpretação do texto de Machado de Assis feita por um dos mais importantes artistas brasileiros: Candido Portinari.

*JOÃO CANDIDO PORTINARI é fundador do Projeto Portinari, no qual trabalha também como diretor-geral, buscando o resgate da obra e da vida de seu pai, o artista plástico Candido Portinari.

Posfácio 02

Perfil de Machado de Assis

por Ale Santos*

No século XIX, o Brasil é marcado por uma confluência de motivações, ideologias e realidades diversas se chocando e transformando as bases mais profundas da nossa nação. Inúmeros processos ou gatilhos sociais haviam despertado nos anos anteriores e se moviam para um futuro disputado por grupos políticos como monarquistas e republicanos. Seria mais simples descrever a realidade daquele período como uma batalha de interesses dicotômicos para facilitar nosso entendimento sobre as personalidades da época, só que isso destruiria a riqueza de suas almas, das emoções e desejos despejados em sua arte.

A complexidade dessa história alimentou e fez nascer um dos maiores nomes da literatura brasileira: Machado de Assis. Enquanto sua obra traduz a psique da sociedade, sua história revela as engrenagens por trás das camadas sociais e suas articulações. O próprio autor deixou poucos registros sobre seus primeiros anos de vida, a maioria deles estão em poemas como o que escreveu para sua mãe (“Quem foi que o berço me embalou da infância/ Entre as doçuras que do empíreo vêm?”). Mas grandes biógrafos como Manoel José Gondin da Fonseca se dedicaram a lançar luz sobre a vida do autor.

Não há como falar de Machado, ou melhor Joaquim Maria Machado de Assis, sem falar da grande cidade, Rio de Janeiro, na época, capital do Império. O escritor nasceu em 1839, quando o Rio estava em vias de se tornar palco de movimentos históricos como a abolição da escravatura e a fundação da República. Antes mesmo disso, foi o local de nascimento do primeiro jornal impresso do país, a Gazeta do Rio de Janeiro, e se tornou um terreno fértil para a elite intelectual do nosso país.

A capital brasileira enriqueceu muito durante o ciclo do café e também com o cultivo de cana-de açúcar e fez da escravidão a força motriz da sua economia. Até 1840, metade da população do Rio de Janeiro era composta por negros escravizados. A escravidão fazia parte do dia a dia de todas as pessoas e, assim como muita gente hoje em dia diz não saber viver sem a internet, naquela época poucos se “atreviam” a pensar como seria a sociedade sem a escravidão — era coisa para abolicionista. A historiadora Mary C. Karasch defende que os trabalhos manuais eram encarados como “coisa de escravo”, logo, coisa de pessoas pretas, africanas, crioulas.

Machado era filho do pintor Francisco José de Assis, referido muitas vezes como mulato, por sua vez nascido de escravos alforriados, que muitos biógrafos denominam como pardos. Isso revela uma das chaves para entender a noção racial construída por aquela sociedade, recaindo não apenas sobre o escritor, mas sobre todos os outros afrodescendentes no século XIX.

Utilizar as mesmas denominações da época não nos ajuda a determinar as características étnicas dessas pessoas como são hoje, afinal, não havia uma grande discussão na sociedade ou um esforço para entender a população negra. Os termos variaram diversas vezes em situações e regiões diferentes. O governo imperial distinguia a população apenas entre as raças brancas, indígenas e africanas. Tendo como resultado da miscigenação os pardos (negros com brancos) e caboclos (índios com brancos), todavia os pardos também poderiam ser conhecidos como crioulos se estivessem em situação de escravidão e como pardos em situação de liberdade — ambos sendo os negros nascidos no país, afro-brasileiros, diferentes dos africanos que recebiam da sociedade a maior carga de desprezo. “Pardo” foi substituído por “mestiço” em 1890 e depois, em 1911, é possível encontrar a defesa de João Batista de Lacerda, antropólogo e médico diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro para a denominação “mestiços negroides”, estes seriam os pardos com traços de afrodescendentes.

Francisco José se casou em 1838 com Maria Leopoldina, agregada de dona Maria José de Mendonça Barrozo Pereira, no morro do Livramento. Maria teria nascido em Açores e chegado ao Rio de Janeiro em 1815, mas sua história não é um consenso entre os historiadores. Inusitadamente, ambos os pais de Machado eram letrados, teriam sido educados na própria chácara em que viviam. Saber ler e escrever era um privilégio na época, estudos apontam o analfabetismo para mais de 77% da população acima dos quinze anos de idade, tendo em vista a parcela de escravizados dessa estatística — quase 50% da população —, podemos supor a existência de uma educação restrita à parcela mais rica da cidade.

Machado passou a frequentar uma escola pública da região. É importante ressaltar o quanto, naquele período, a formação dos professores e sua atuação na rede pública eram desniveladas. Após várias tentativas frustradas de implementação durante o Império, as primeiras escolas “normais” para docentes surgiram em 1835, reservando a melhor educação para a formação de professores da nova geração aristocrática. Então, é provável que Machado tenha recebido reforços na casa de sua madrinha de batismo e proprietária da chácara, dona Maria José.

Aquele garoto que tivera acesso a uma educação tão exclusiva teve contato cedo demais com a tragédia da morte. Aos quatro anos perdeu a irmã e aos dez, a mãe, um golpe do destino que marcou o escritor. Após o ocorrido, foi morar no bairro de São Cristóvão com o pai e ficou com ele até os quinze anos, quando resolveu se aventurar pelo centro do Rio de Janeiro por conta de uma desavença com a madrasta. É notável o apreço que apresenta com as letras já nos primórdios da sua adolescência. Era 1854, publicou no Periódico dos Pobres (jornal trimestral) e no ano seguinte já escrevia regularmente na Marmota Fluminense, de Paula Brito. Esse caminho intelectual, extraordinário, seguido por Machado, o colocava em rota contrária à realidade da vida de seu pai, enquanto os serviços braçais estavam ligados à essência do africano e seus descendentes, o intelecto e a erudição (seguindo as normas da educação colonial europeia) tornavam o homem miscigenado ou mestiço mais aceito pela comunidade local — essa discussão só veio a se consolidar no início do século XX, quando o racismo científico da época foi dividido entre um grupo fiel à ideia da inferioridade racial negra biológica e outro que acreditava na inferioridade baseada na cultura ou na raiz social. O segundo grupo ganhou mais adeptos e acabou se perpetuando posteriormente. Eles entendiam o “mestiço” como alguém capaz de elevar sua existência por meio do convívio com os brancos. Portanto, segundo João Batista de Lacerda: “Os mestiços, com sua inteligência, dariam poetas, pintores, escultores, músicos, magistrados, oradores eloquentes e literatos admiráveis”.

Sua trajetória deixa claro a consciente articulação social e o gosto por estar em meio à elite intelectual não apenas para observar, mas para arraigar-se a ela. Aos dezessete anos, Machado se tornou revisor na Imprensa Nacional e encontrou na figura de Manuel Antônio de Almeida, autor de Memórias de um sargento de milícias, um grande apoiador. Foi no círculo boêmio carioca que estreitou laços com os principais intelectuais da época. Aliás, quando pensamos em Machado de Assis, tradicionalmente propagamos a imagem correspondente aos seus últimos anos de vida, entretanto essa fase de boêmia é bastante marcada pela discussão e observação da psicologia do ser humano, que viria à tona em suas obras. Nessa fase, o escritor frequentou o teatro, a política, a comédia, além de rodas de conversas em que pôde exibir seu pensamento perspicaz e sua eloquência.

Em 1860, aos 21 anos, já era influente com alguns nomes importantes da época, como o republicano Quintino Bocaiúva (o primeiro ministro das Relações Exteriores da República, que exerceu o cargo de 1889 a 1891). Cerca de três anos depois, o autor reúne em livro duas comédias: O protocolo e O caminho da porta. Em 1866 conhece na casa de seu amigo Faustino a portuguesa Carolina Augusta Xavier de Novaes, que ali cuidava do irmão que sofria de distúrbios mentais. Carolina era considerada muito bonita e despertava interesse de várias personalidades mais bem-sucedidas que Machado naquele momento, mas a inteligência e suavidade com as palavras galanteadoras ganhou o coração da moça, que passou a ser chamada carinhosamente de “Carola”. Os dois se casaram a contragosto dos irmãos da moça, que insistiam em lembrar da ascendência negra do noivo, chamando-o de mulato. Mesmo assim, o amor prosperou. Ele escreveu várias cartas românticas a ela, assinando como “Machadinho”, e se orgulhava da sua boa educação: “Tu pertences ao pequeno número de mulheres que ainda sabem amar, sentir e pensar”, escreveu em uma das cartas.

Morando na Lapa com a esposa, Machado consegue um emprego na 2a seção da Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas, onde colocou em prática um pouco do seu pensamento abolicionista. Nessa seção, era responsável pela aplicação das leis no 2.040, de 28 de setembro de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre, e no 601, de 18 de setembro de 1851, conhecida como Lei de Terras. A compreensão da realidade tornou seu discurso antiescravagista algo sutil. Apesar da discussão abolicionista ganhar cada vez mais adeptos, após os anos 1870, era considerada tabu ou uma questão problemática na qual muita gente da elite não gostaria de se envolver, e ainda havia, costurado na abolição, o futuro da monarquia, defendida pelo escritor.

André Rebouças, um dos abolicionistas considerados mais radicais, foi exilado, junto da família Real Brasileira, após a proclamação da República. Então, pode até parecer que Machado tinha certo instinto de sobrevivência em relação a essas questões, pois ele compreendia claramente algo que até hoje muita gente não percebe: a abolição não significou o fim do racismo. Ele usou sua ironia para escrever uma crônica, publicada em 19 de maio de 1888, famosa por apresentar um personagem tão hipócrita a ponto de alforriar um negro escravizado antes da abolição, para se aproveitar da fama, enquanto ofereceu ao mesmo negro a mesma humilhação em um modelo “novo” de trabalho remunerado:

Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.

Na década de 1880 Machado gozava de um prestígio imenso, além de uma situação financeira inimaginável para qualquer rapaz negro de um cortiço no Rio de Janeiro, e já era chamado por alguns de “o maior escritor brasileiro vivo”. Começou a década publicando Memórias póstumas de Brás Cubas, foi morar na rua Cosme Velho em 1884 e se tornou oficial da Ordem da Rosa por decreto da própria Princesa Isabel. Entre seus grandes amigos estava Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo, nome consagrado entre os maiores abolicionistas do país. Os dois trocaram cartas emocionantes, muito sinceras, revelando uma ligação verdadeira entre os intelectuais.

Foi com Nabuco que Machado compartilhou uma grande realização com a fundação da Academia Brasileira de Letras, escolhido por unanimidade como primeiro presidente. E foi com Nabuco, também, que compartilhou sua maior dor com a morte da esposa, Carolina, dias antes de completarem 35 anos de casados, em 1904: “Foi-se a melhor parte da minha vida, e aqui estou só no mundo”, escreveu ao amigo. Os anos seguintes ao falecimento roubaram um pouco da vivacidade de Machado. O pesar não o imobilizou, estava frequentemente nas rodas de intelectuais e nos jantares, e sobretudo não deixava de escrever. Em 1908 publicou o Memorial de Aires, seu romance de despedida.

A morte chegou para o autor aos 69 anos de idade, vítima de uma úlcera cancerosa, como em um episódio dramático, recusou a extrema-unção do padre, oferecido por amigos. Seria hipocrisia, segundo o próprio autor. Uma multidão seguiu em cortejo da Academia Brasileira de Letras até o Cemitério São João Batista com seu corpo. Jornais noticiaram o fato e publicaram biografias do escritor no Brasil e em Lisboa. Sua obra e sua vida foram dignas de um verdadeiro mestre.

É uma infelicidade absurda que, no início da República brasileira, a elite intelectual tenha abraçado os ideais eugenistas, teorias sobre a superioridade racial ou cultural de pessoas brancas. Diferente da época em que Machado nasceu, na qual o peso de ser “mulato” era menor, após sua morte o entendimento era outro. Para muitos, a intelectualidade só seria alcançada por pessoas brancas, e vem do amigo próximo do escritor, Nabuco, a evidência do início do movimento de branqueamento de sua imagem. No aniversário do trigésimo dia do falecimento de Machado, José Veríssimo publica no Jornal do Comércio um artigo em sua memória: “Mulato, foi de fato um grego da melhor época, pelo seu profundo senso de beleza, pela harmonia de sua vida, pela euritmia da sua obra”. Nabuco ficou horrorizado e respondeu em carta: “Eu não teria chamado o Machado mulato e penso que nada lhe doeria mais do que essa síntese […]. O Machado para mim era um branco”. Fato que não coloca em dúvida nada sobre sua obra, mas que ainda fala muito sobre o imaginário popular brasileiro.

Hoje estamos cada vez mais perto de enxergar a grandeza de Machado, não apenas como um mestre literário e gênio da época, mas como um revolucionário em sua própria existência.

*ALE SANTOSescritor de ficção e fantasia afro-americana e pesquisador de narrativas africanas. Foi citado pela revista Piauí como o “Cronista dos Negros no Twitter” e é também colunista da Vice Brasil, além de colaborar com The Intercept Brasil e com a revista Superinteressante.

Posfácio 03

A narrativa que pensa a si mesma

por Rogério Fernandes dos Santos*

“Há na alma deste livro, por mais risonho que pareça, um sentimento amargo e áspero, que está longe de vir dos seus modelos.” (p. 16)

Depois de uma série de tentativas de perpetuar seu nome, Brás Cubas, representante da elite fluminense do século XIX, resolve narrar, após sua morte, sua trajetória de desencontros amorosos e ambições frustradas.

O despropósito da empreitada levada a cabo por Brás Cubas — escrever suas memórias do além-túmulo, desprezando o elemento fantástico e se recusando a “contar o processo extraordinário” empregado na composição de sua narrativa — alia-se à não menos insólita narrativa fragmentada, composta por pequenos episódios comentados com erudição, certa dose de melancolia e acidez. Ao final, o olhar póstumo do narrador avalia o sujeito que foi em vida e sentencia.

Somadas umas cousas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria. (p. 422)

Trata-se, portanto, de uma extraordinária oportunidade de análise da própria vida, seus desencontros e acasos, a partir de um privilegiado ponto de vista: o da morte.

A seguir aponto algumas das circunstâncias de publicação desse importante romance de Machado de Assis e comento alguns episódios, tendo como ponto de fuga a questão da forma e o conteúdo estranho, melancólico e irônico que dela se extrai.

Durante o período em que Machado de Assis atuou como romancista, a forma romance foi o gênero de maior prestígio entre os escritores. Até meados da década de 1870, a obra de José de Alencar era o paradigma do gênero. O romance alencarino tratou de colocar em perspectiva a sociedade de hábitos burgueses e escravistas, sem apontar as contradições implicadas nessa fórmula. Além disso, romances como O Guarani e Iracema trataram de construir o imaginário mítico da fundação da nação brasileira. A idealização do encontro entre o europeu e o indígena, que sabemos hoje ter sido de sufocamento cultural e identitário, expropriação e tragédia para os povos tradicionais, contribuiu para a construção de uma ideia de nação democrática e sem conflitos. Os paradigmas do romance brasileiro, até a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, foram, portanto, os romances de costumes, que retratavam a vida urbana do Rio de Janeiro, com seus códigos sociais paternalistas e os romances de cor local, comprometidos em retratar tradições e peculiaridades das diversas regiões do país. Deve-se registrar algumas exceções nesse painel. As Memórias de um sargento de milícias, publicadas em folhetim entre 1852 e 1853, de Manuel Antônio de Almeida, que buscou representar, em chave dialética, as classes subalternas do Rio de Janeiro. E Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, primeiro romance escrito por uma mulher negra no Brasil, publicado em 1859, e marco da literatura afro-brasileira.

É nesse contexto que Machado de Assis se lança como romancista. O primeiro livro do gênero, Ressurreição, foi publicado em 1872. Entre seu quinto romance, Memórias póstumas de Brás Cubas, lançado em capítulos na Revista Brasileira em 1880 e posteriormente reunido em livro em 1881, e Ressurreição, há uma distância temporal de quase dez anos. No entanto, é a abordagem reflexiva e temática do gênero romanesco que acentua a distância.

Os romances anteriores a Memórias póstumas se distanciam da fórmula do romance de costumes e buscam analisar o conflito decorrente das assimetrias sociais e de gênero no Brasil oitocentista. Em Ressurreição (1872), o protagonista Félix se apaixona por Lígia, jovem viúva que tem que lidar com o ciúme e os caprichos de seu pretendente. Em A mão e a luva (1874), Guiomar, a protagonista, é a protegida de uma baronesa e busca ascensão social em uma sociedade patriarcal. Assediada por três jovens, deve escolher pragmaticamente aquele que melhor se encaixa em seus planos, e garantir com isso determinada autonomia social. Em Helena (1876), o conselheiro Vale, abastado proprietário, morre e instrui por testamento que a sua filha Helena, fruto de um romance extraconjugal, deve ser recebida por sua família como se parte dela fosse. Esse corpo estranho fere os códigos morais da tradicional família Vale. Helena é tutelada pelo irmão, que a deseja, pelo padre, que busca integrá-la à moral cristã, e pela tia, que a vê como aventureira. Ao final, Helena mostra-se moralmente superior a qualquer um dos que a buscavam tutelar. Ao longo da narrativa, as expectativas do leitor vão sendo frustradas e Helena acaba por pagar o preço por ousar quebrar as regras silenciosas do paternalismo. Por fim, Iaiá Garcia (1878) trata dos amores frustrados pelo desajuste social entre amantes de origens sociais distintas. O romance expõe a estrutura patriarcal gerida pelos caprichos de Valéria, cujo filho, Jorge, se apaixona por Estela, uma jovem de classe social inferior, e os desencontros amorosos originados dessa estrutura.

Nesses romances o que há em comum é a crise proveniente das assimetrias sociais e as oscilações do patriarca que opera todos os componentes e atores sociais em prol de sua visão de mundo. A possibilidade de realização amorosa e autonomia subjetiva passa pelo crivo de um proprietário. Restando ao subalterno, homem livre sem posses ou mulher agregada à família, o mundo do interdito, das pausas e ambiguidades em busca de ascensão social e autonomia. Alguns personagens machadianos darão a esse subterfúgio de sobrevivência o nome de dissimulação. Para o capricho do patriarca, a dissimulação do subalterno.

Nesse primeiro momento, Machado está preocupado em descrever uma série de contradições originadas das assimetrias sociais e históricas. O homem livre sem posses é muitas vezes um pobre-diabo às margens da sociedade, como o pai de Helena. A mulher proprietária reafirma os valores do paternalismo, exercendo o poder em nome do marido já morto. A mulher pobre é o entrave na harmonia da casa, sempre tendo suas ações tuteladas ou em suspeita. O patriarca comunga de uma visão de mundo também assimétrica, cujo alvo são os bons costumes da civilização burguesa de matriz europeia, mas que a mira trôpega acaba por acertar no violento mandonismo escravocrata.

Para as ambições artísticas de Machado de Assis, explícitas desde a apresentação de Ressurreição, em que ele recusa o “romance de costumes”, a representação dessas desigualdades em uma estrutura ficcional tradicional não bastava para caracterizar as singularidades da sociedade brasileira. Ao longo da década de 1870, as condições de circulação e recepção do romance machadiano foram se ajustando em um processo criativo empreendido por Machado que culminou na destruição de um modelo de romance que desde o início o autor já pressentia esgotado: o do romance de costumes, pitoresco e de cor local. Como ele mesmo escreveu no ensaio Notícias da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade, de 1873: “O que se deve exigir do escritor antes de tudo é certo sentimento íntimo, que o torne homem de seu tempo e de seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”.

Livre no tempo e no espaço, o narrador Brás Cubas vai ao começo das eras, rompe com a linha entre vida e morte e, no entanto, é terrivelmente representante de uma classe social brasileira. Machado escolheu a forma extravagante e destrutiva de Brás Cubas para representar as desigualdades advindas da estrutura patriarcal e escravista, e os caprichos de um rico proprietário brasileiro do século XIX. Saem de cena as agruras das jovens mulheres em torno da questão da ascensão social e entra em primeiro plano o rico proprietário, protagonista do romance e da escrita. Ávido por holofotes, Brás Cubas fará uso desse protagonismo para se desnudar diante do leitor, em um exercício ambíguo de sinceridade programada.

O assunto do romance é variado, lição anotada da experiência de Machado de Assis como cronista e autor de folhetim. Mas o tom variado, humorístico, oculta certa gravidade do homem que revê sua existência.

O ser humano é um livro que a cada nova edição busca aparar as hastes da imperfeição. É dessa forma que Brás Cubas, em seu delírio, vê o próprio corpo, na forma da Suma teológica de São Tomás de Aquino: “Logo depois, senti-me transformado na Summa Theológica de S. Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; ideia esta que me deu ao corpo a mais completa imobilidade”. (p. 38)

O narrador Brás Cubas, ser fictício feito de palavras, possui um corpo em forma de livro, possui substância. Essa substância, ou alma, se corrige ao longo do tempo como uma errata pensante. Possui espessura, assim como temos um temperamento.

Às vezes, esqueço-me a escrever, e a pena vai comendo papel, com grave prejuízo meu, que sou autor. Capítulos compridos quadram melhor a leitores pesadões; e nós não somos um público in-folio, mas in-12, pouco texto, larga margem, tipo elegante, corte dourado e vinhetas… principalmente vinhetas… (p. 105)

As edições de pouco texto e encadernações luxuosas de corte dourado sugerem a classe social a que pertence Brás Cubas. É possível que essa alma, simbolizada pela edição “in-12”, se aperfeiçoe ao longo da vida? Como as reedições dos livros que vão acumulando erratas e revisões ao longo do tempo? Brás acredita que sim. E que a última morada desse livro é o banquete dos vermes.

Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes. (p. 122)

Mas como o tempo vai corrigindo a humanidade ao longo de uma vida em uma atmosfera carregada de mandonismo e violência? A essência humana do egoísmo é a nota que se acresce aos que podem se ver do lado certo do chicote. Como no episódio de Prudêncio (pp. 55-6). Ao encontrar-se na outra ponta do chicote, o negro Prudêncio, vítima das travessuras do jovem Brás Cubas, que lhe cavalgava quando criança, reproduz a violência a que foi submetido quando escravo, utilizando, inclusive, o mesmo “Cala a boca, besta” diante dos pedidos de clemência de sua vítima.

Se admitirmos essa capacidade de a cada reedição, ou etapa da vida, acumularmos uma correção, qual é o tipo de lição anotada por Prudêncio? A da escravidão como modo estruturante da vida social brasileira, essência da violência que se reproduz ao longo do tempo, das décadas. Assim, as erratas vão acumulando a violência de classe, a estrutura da escravidão, pautando-se pela violência da sociedade patriarcal. As erratas antes são confirmação de um estado de exceção que uma lição anotada de experiência histórica. Em uma encruzilhada de sentidos, as contradições apontadas no início deste ensaio encontram sua síntese na metáfora das erratas pensantes. Imbricam a materialidade do livro enquanto corpos privilegiados — Brás Cubas — ; e enquanto corpos violentados — Prudêncio — que reproduzem a estrutura escravista em uma constante de erratas a repetir “Cala a boca, besta”.

***

A relação conflituosa de Brás Cubas com seu leitor é uma das questões centrais do romance. Desde o prólogo “Ao leitor” (p. 17), assinado pelo autor Brás Cubas, a ambígua relação entre narrador e leitor vai se adensando, envolvendo agressividade e adulação. Talvez o fato de Brás Cubas se apresentar, desde o prólogo, como um autor de poucos leitores se relacione com a consciência de que o hipotético leitor não sabe “o que […] pensar deste livro”. O que pensará dele o leitor? Questiona um zombeteiro Brás Cubas. O que pensar dessa melancolia escondida por detrás do riso? Questiona o incrédulo leitor.

Brás Cubas, sem modéstia, sabe exatamente o que esperar de seu romance. A mesma diminuta recepção que teve a obra de Stendhal. Forjado na forma livre de Sterne e Xavier de Maistre, e com algumas “rabugens de pessimismo”. Brás Cubas sabe que sua obra experimental pertence a um grupo especial de leitores. O autor ainda confessa que, para angariar as simpatias do público, fugirá de “um prólogo explícito e longo”, concluindo que “o melhor prólogo é o que contém menos cousas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado” (p. 17). Fica a provocação desse leitor a Brás Cubas: se pouco importa a recepção do público, por que essa volúpia em chamar a atenção, ora adulando o leitor, ora dando-lhe piparotes? Por que fazer coro a Stendhal em sua indisfarçável frustração diante da pouca recepção de sua obra? Talvez a estratégia seja a de explicitar a destruição do paradigma do romance de costumes e dar ao narrador, e não ao autor, a tarefa de alardear o ineditismo da empreitada.

O fato é que a forma adotada na concepção romanesca e o modo como o público virá a receber sua obra sempre esteve no centro das preocupações de Machado de Assis. Como vimos, Machado desde o início recusa a fórmula do romance de costumes. O que parece lhe interessar é o romance com suas possibilidades de despiste e ocultação. Um instrumento comunicativo da experiência moderna, tratando de coisas distantes no tempo e espaço.

As concepções de romance e o direcionamento da obra ficam ainda mais evidentes no “prólogo da quarta edição” assinado por Machado de Assis, em 1896, mais de uma década após a publicação das Memórias póstumas. Nele, Machado relata o assombro de Capistrano de Abreu, um dos leitores que se viu sem parâmetros para avaliar o que tinha em mãos: “Memórias póstumas de Brás Cubas são um romance?”. Ao amigo, Machado responde citando o defunto autor, dizendo “que sim e que não, que era romance para uns e não o era para outros” (p. 15). No entanto, vale lembrar que Brás Cubas não diz que se trata de romance para alguns e para outros não, a filiação ao gênero romanesco não é contestada, mas sim a que gênero de romance pertence a sua obra.

Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião. (p. 17, grifo meu)

Da pena da galhofa e da tinta da melancolia Brás Cubas extrai o puro romance, gênero da “gente grave”, e que a “gente frívola” não reconhecerá como sendo o seu romance ideal. Como atrativo para ambos os públicos, um prólogo truncado, para simpatizar com os graves, e curto, para simpatizar com os frívolos. Resolve-se assim a questão do artista em busca de seu público. Brás Cubas quer abocanhar os dois lados do mercado.

Para tanto, o autor medita quanto ao método que irá adotar para conceber o seu projeto; é disso que se ocupará nos primeiros parágrafos da obra, abusando de cortes abruptos na ação. Todo o primeiro capítulo, “Óbito do autor” (p. 19), irá tratar da gênese de sua aventura literária¹ em contraste com sua morte. As primeiras linhas dão conta da hesitação do autor quanto ao lugar em que deveria narrar a sua morte, se no fim ou no começo do romance; como o costume é o fim, o autor acha por bem adotar um diferente método. O método, claro, não diz respeito apenas à questão do lugar em que se deve colocar no livro a morte do protagonista, e sim à velocidade de cortes que a narrativa adota, chamando a atenção para o procedimento retórico que o narrador faz uso para ilustrar seu método. Do monólogo das primeiras conjecturas sobre a forma o narrador passa a descrever as circunstâncias de sua morte:

Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. (p. 19)

***

A narrativa faz uma descrição realista de um fato sobrenatural. O autor defunto passeia sobre o seu corpo morto e dá as tintas de sua condição — “sessenta e quatro anos, rijos e prósperos” —, pontuando realisticamente o fato com datas e circunstâncias a narrativa fantástica ganha contorno realista. Note-se que o leitor ainda não foi convocado a participar da narrativa, Brás Cubas está dividindo o palco com o seu cadáver. Lamenta a quantidade de amigos presentes, justifica-se e acompanha o discurso de um dos presentes. Ironiza: “Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei”. (p. 20)

Em seguida, a mirada do narrador se detém em três mulheres e convida o leitor a observá-las também. São elas: Sabina, a irmã de Brás Cubas, com sua filha, o “lírio do vale”, e também uma outra, cujo nome ainda não é revelado, mas que já havia sido apresentada ao leitor nos últimos momentos de vida de Brás Cubas. A experiência da morte faz com que a imaginação da moça alce voos, “desde Ilisso às ribas africanas”, ao passo que o narrador, ao mesmo tempo em que narra, participa da ação, deixando-se levar pela orquestra da morte.

Agora, quero morrer tranquilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro. (p. 21)

Metodicamente vão se interpenetrando dois momentos: o presente da narrativa sendo escrita pelo defunto autor no além e o passado da tarde chuvosa em que Brás Cubas expira. Notemos que ao passo em que descreve o método de composição, optando por contar a sua morte no lugar de seu nascimento, o narrador ilustra essa opção adotando o método de simultaneidade. O leitor deve acompanhar os desaparecimentos do narrador e a troca constante de papéis; enquanto descreve, o narrador vivencia; enquanto pontifica o tempo e o espaço, ele vivencia fluxos de consciência que o levam a “sentir” a vida minutos antes de deixá-la. Em seguida, outro corte: “Morri de pneumonia”, mas o que de fato me matou foi uma ideia grandiosa, que cumpre estendê-la do outro lado do mistério, a escrita destas Memórias, parece nos dizer Brás Cubas. “É possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade.” (p. 21) Após a destruição impiedosa do protocolo do romance realista, o autor aciona o livre-arbítrio do leitor, convidando-o a julgar por si mesmo se a morte veio de uma pneumonia ou de uma ideia fixa; trata-se do embate entre a ciência e a subjetividade. Uma luta moral que será travada também no âmbito dos gêneros: um romance não tem compromisso com a verdade, e sim com a verossimilhança. Já uma autobiografia busca na memória justificar os atos do memorialista. Levando em conta que os frívolos não encontram aqui o seu romance usual e os graves acham “o puro romance”, como situar o que está sendo narrado? A assertiva de Capistrano faz coro ao leitor desorientado. As Memórias são um romance?

Pneumonia ou ideia fixa? Brás Cubas credita sua morte ao trapézio caprichoso que ele levava na mente; símbolo da motivação dos personagens, o trapézio representa a colagem acelerada de episódios e impressões que o narrador vai fornecendo ao leitor. Os cortes e desmandos da narrativa, que vão se sucedendo em alta velocidade, capítulo a capítulo, fazem eco na imagem do narrador trapezista no trapézio da existência. A forma geométrica do trapézio, na qual as ideias produzem as “arrojadas cabriolas de volatim”, salvo engano matemático, é um quadrilátero que possui dois lados paralelos e dois outros não paralelos. Trata-se de um esquema da estrutura narrativa. Dois lados paralelos significam os tempos da narrativa em que o personagem se observa e comenta a cena em que está participando. Os volteios e caprichos do narrador dão a ideia de instabilidade e capricho, como no trapézio do circo.

A indefinição quanto ao gênero, romance realista ou memórias do além-túmulo (notemos que em qualquer destas possibilidades o protocolo do romance tradicional está sendo questionado), antes confirma o vínculo com a forma romanesca do que o invalida.

A imagem do trapézio contida no cérebro como ambiente privilegiado para a concepção de uma obsessão — ideia fixa pela forma — é elemento importante nos primeiros capítulos, em que é difícil para o leitor encontrar um terreno seguro, dada a quantidade de volteios narrativos.

A velocidade com que vão aparecendo ideias e personagens históricos ao longo dos primeiros nove capítulos atesta a vontade do narrador em fazer notar o domínio que ele tem da narrativa. Brás Cubas dá um show de entretenimento metanarrativo, no qual não há trama propriamente dita, mas elipses e fragmentos em que o narrador contracena com figuras históricas, faz viagens no tempo, dialoga com a Natureza, tudo ao sabor do trapézio que tem na mente.

Em “A ideia fixa”, capítulo IV do romance, Brás Cubas chega a silenciar o leitor, travando com ele um diálogo inaudível. As falas do leitor são ocultadas e temos acesso apenas às falas do narrador. Ao mesmo tempo, chama a atenção de Lucrécia Bórgia, cuja imagem de Messalina foi relativizada por um historiador: “E tu, madama Lucrécia, flor dos Bórgias, se um poeta te pintou como a Messalina católica, apareceu um Gregorovius incrédulo que te apagou muito essa qualidade, e, se não vieste a lírio, também não ficaste pântano”. (pp. 28-9)

Brás Cubas se coloca entre o “poeta e o sábio”, defendendo que o estudioso desmistifica a poesia contida nos fatos. Fatos que são igualmente relativizados por meio das revisões históricas, fazendo da história parte do caprichoso trapézio da mente humana. O argumento do narrador é de que poesia e história relativizam-se e assumem posições divergentes à medida que suas especialidades assumem a matéria a ser retratada. Em última instância, Brás Cubas prega a liberdade de abordagem dos fatos, unindo as diversas for- mas de narrá-los.

Esse princípio constitutivo da prosa, a destruição e paródia dos parâmetros romanescos de seu tempo, é levado a cabo por meio de uma narrativa autorreflexiva. Uma narrativa que comenta, questiona e seleciona a si própria, como uma espécie de autoanálise de suas fundamentações estruturais. Memórias póstumas tornou-se uma espécie de laboratório de procedimentos, temas e estruturas que serviriam para o próprio Machado compor seus romances seguintes. Memórias póstumas torna-se também a pedra inaugural na ficção brasileira de uma narrativa que fala de si, interroga a sua própria ficcionalidade, estruturando-se em digressões reflexivas, pausas, acelerações e desconstruções da narrativa em um exercício de crítica literária que expõe métodos, avalia certas convenções de escola e demonstra sua falibilidade. No capítulo IX, “Transição”, por exemplo, Brás Cubas, após explanar ao longo dos capítulos anteriores sobre a razão, a morte, os amores frustrados e a obsessão por perpetuar-se na memória coletiva com a invenção do emplasto, cede aos desejos do leitor por uma narrativa. Antes, porém, pega na mão do leitor, que o acompanhou do enterro ao delírio e, com o recurso de vários cortes, fala de seu método ao mesmo tempo em que o pratica. Assim, em poucas linhas vai do delírio “em presença de Virgília” ao pecado da meninice e finalmente ao seu nascimento em 20 de outubro de 1805. Mais uma vez Brás Cubas é um exibicionista. Enquanto narra ao leitor, seu interlocutor e consciência, ele desloca-se da morte ao nascimento, auscultando a si e ao método que aplica.

Viram? Nenhuma juntura aparente, nada que divirta a atenção pausada do leitor: nada. De modo que o livro fica assim com todas as vantagens do método, sem a rigidez do método. Na verdade, era tempo. Que isto de método, sendo, como é, uma cousa indispensável, todavia é melhor tê-lo sem gravata nem suspensórios, mas um pouco à fresca e à solta, como quem não se lhe dá da vizinha fronteira […] (p. 50)

O método, como as “bandeiras particulares” que sobrevivem à sombra das “bandeiras públicas”, não se deixa notar a princípio, mas se perpetua em sua discrição, nos subterrâneos, como a costura de um terno que elogiamos por estar oculta, como a ideia fixa de Brás Cubas flutuando no trapézio da mente, materializada por meio do método de composição do autor.

Esse método autorreflexivo tem suas filiações no romance digressivo de Sterne, como o próprio Brás Cubas afirma em seu prefácio. Há, também, a menção a Xavier de Maistre; em comum, para além da forma, o tema da viagem e do deslocamento, que serve aos autores como modo de desvendar o processo psicológico de seus personagens, desnudando o processo de composição de seus romances. Outro viajante, não creditado na primeira edição em livro, mas presente em uma passagem significativa das Memórias póstumas, é Almeida Garrett e seu romance Viagens na minha terra. Uma linhagem de romances que abusam da artificialidade e da descrença no processo de representação do real, e ao mesmo tempo se aprofundam na especificação do complexo humano, suas contradições, abismos e narrativas inconclusas. Como a vida e a morte.

***

Para finalizar, evoco a figura de Augusto Meyer, um arguto leitor de Memórias póstumas da primeira metade do século XX. Ele observa que os malabarismos da forma machadiana são disfarces para a sua profunda gravidade. No subterrâneo dos rodopios do narrador, repousa uma estabilidade. A melancolia ensimesmada e as diversas máscaras adotadas por Brás Cubas não saberiam esconder a profunda inércia diante do desespero. A ausência de um projeto que dê sentido à existência, tantas vezes acalentada em empreendimentos vazios — o emplasto, os projetos políticos e amoroso —, é testemunho da dificuldade em estabelecer um contato com o Outro para além do egoísmo. Para Meyer, a vida orbita em torno do vazio e esse movimento do nada ao nada é a verdadeira substância do romance. “O voluptuoso, o esquisito é insular-se o homem no meio de um mar de gestos e palavras, de nervos e paixões, decretar-se alheado, inacessível, ausente […]”. (p. 306)

É esta a percepção de Meyer quanto ao “homem subterrâneo” contido em Machado. Da grande pirotecnia narrativa, a melancolia e o niilismo configuram a estabilidade, o motivo principal de sua obra. “O mal começa com a consciência demasiada aguda, pois o excesso de lucidez mata as ilusões indispensáveis à subsistência da vida”². Podemos mesmo dizer que a hiperconsciência presente em Brás Cubas o leva a compreender as engrenagens que regem a condição humana em toda a sua contradição. Diante do abismo da vida, revelado após a experiência da morte, resta preencher o tédio com alguns capítulos sobre o ocaso de sua trajetória em vida.

O complexo e revelador capítulo LXXI, “O senão do livro”, é um exemplo acabado da confidência com que o defunto autor trata a questão. Meyer interpreta esse capítulo como uma oportunidade de Machado de Assis dizer a si mesmo algumas verdades amargas. “Temos aí uma confissão, um desabafo, uma admirável autocrítica literária e um suspiro de ressignificação, tudo amalgamado”. “O senão do livro é também o senão de si mesmo.” A contração cadavérica e confessional do capítulo, segundo Meyer, reside em Machado e não no falecido Brás Cubas³.

Termo inspirado em Dostoiévski, que se revelou mais em sua ficção do que em seu Diário de um escritor, o “homem subterrâneo” Machado de Assis se revelaria também em seus escritos ficcionais.

“Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contrição cadavérica…”. Sempre me pareceu uma confissão essa frase. Pode ser que, ao escrevê-la, apenas pensasse em falar pela boca de Brás Cubas, desenvolvendo a lógica moral da personagem. Mas assim mesmo seria uma confissão indireta e inconsciente. Caso normativo dos escritores de ficção; eles se confessam através das encarnações imaginárias, indiretamente, com uma sinceridade mais honesta do que na correspondência ou nos cadernos íntimos.⁴

Ouso complementar o mestre. Creio que a ficção também revela algo que não está no escritor. De difícil apreensão, a ficção pode revelar um subterrâneo humano que muitas vezes nos é doloroso acessar. Revelo-me na leitura que faço. Estranhamente nos identificamos com aquele ou aquela personagem da qual temos repulsa e admiração. Um privilegiado Brás Cubas ou um náufrago da existência como Quincas Borba. A consciência de nossa condição de classe, com seus privilégios ou precariedades, seria parte do legado de nossa miséria? Anoto, como fez Augusto Meyer, essa passagem reveladora.

“Esta é a grande vantagem da morte, que, se não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar…” (p. 238)

*ROGÉRIO FERNANDES DOS SANTOSdoutor em Letras pela USP. Autor de Incensário e de diversos ensaios sobre a obra de Machado de Assis.

¹Vale a pena chamar a atenção para a intencionalidade de Machado de Assis quanto ao uso do suporte em que seus romances vão inscritos. A primeira edição em livro suprime a citação de Shakespeare, retirada da peça As You Like It, ato III, cena II, presente na edição da Revista Brasileira: “I will chide no breather in the/ world but myself; against whom/ I know most faults.// Não é meu intento criticar nenhum fôlego vivo, mas a mim somente, em quem descubro muitos senões”. No lugar da citação, Machado inclui a dedicatória “ao verme que primeiro lhe roeu as frias carnes de seu cadáver”, e o prólogo “Ao leitor”. Tão importante quanto essas alterações é o fato de que o primeiro parágrafo do capítulo primeiro, “Óbito do autor”, ocupa uma página inteira na edição princeps, como se fizesse uma pausa entre o final do primeiro parágrafo e o início do segundo, que começa na página seguinte. O efeito é o de um movimento de câmera, como se o narrador fizesse uso de cortes para mudar de cena ou focalizar um objeto. Neste caso, o corte vai de um close em Brás Cubas enquanto faz seu pequeno monólogo sobre a composição do romance para uma panorâmica de seu enterro.

² MEYER, Augusto. “O homem subterrâneo” In: Machado de Assis. 1935-1958. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1958, p. 15.

³ Idem, Ibidem, p. 17.

Idem, Ibidem, p. 18.

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