
1984
George Orwell
Navegue pelos textos abaixo
APRESENTAÇÃO
Gregório Duvivier

Alguns acontecimentos são tão imponentes que ofuscam todos os outros, e o ano inteiro em que ocorreram vira sinônimo de algo que aconteceu apenas num lugar. O ano de 1789 passou a significar a Revolução Francesa — ninguém lembra que nesse mesmo ano Lavoisier formulou o princípio da conservação da matéria. Quando falam no espírito de 1968, não estão se referindo ao terremoto que matou duzentas pessoas na Sicília, mas aos protestos estudantis que tomaram a Sorbonne. O ano de 1929 virou sinônimo de crise, assim como 1964 no Brasil quer dizer golpe.
Tenho a impressão de que 1984, de todos os anos da história, é o único que passou a significar algo que não chegou a acontecer naquele ano. Nem depois. Entre todos os fatos que ocorreram em 1984, das Olimpíadas de Los Angeles à reeleição de Ronald Reagan, nenhum foi tão marcante quanto uma realidade alternativa que nunca chegou a ocorrer. Os acontecimentos desse ano se esmaeceram nas sombras de um livro de ficção que, ironicamente, vaticinava que a realidade se tornaria só mais uma narrativa. Logo 1984, quem diria, virou um ano ficcional.
E qual é o motivo do sucesso estrondoso do livro? O que fez um romance distópico virar expressão, gíria, tese, filme e história em quadrinhos? Essas perguntas levam a outra: o que faz de um clássico um clássico? Jardel, ex-jogador do Vasco, teria dito que clássico é clássico e vice-versa. Italo Calvino foi um pouco mais fundo quando publicou Por que ler os clássicos, apontando um paradoxo fascinante: “Toda primeira leitura de um clássico é uma releitura”, e “toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta, como a primeira.”
Poucos livros se encaixam tanto nessa definição quanto 1984. Caso você, por sorte, ainda não o tenha lido, garanto que será como se já o tivesse feito. O que não deve tirar, em nada, o prazer de lê-lo. Muito pelo contrário: vai ser como reconhecer, num desconhecido, um amigo de infância. Você já conhece esse país, e esse futuro: muitas histórias posteriores se passam no mesmo universo distópico — da história em quadrinhos V de Vingança ao videogame Half-Life 2, passando pelo filme Minority Report.
Caso esteja relendo, como fiz pra escrever esta apresentação, vai se deparar com um livro novo. Em plena pandemia, perdido em meio a chamadas de vídeo, encontrei na “teletela” um prenúncio (talvez o primeiro) da internet. Até então imaginava-se que o mundo seria repleto de telas, mas não sei de outro autor que tenha imaginado uma tela que também vê. A teletela é bidirecional, mostra e vê, como a sua, como aquela para a qual você passa o dia olhando, como esta para a qual estou olhando agora.
As coincidências não param por aí. O Ministério da Verdade parece um tataravô do nosso “gabinete do ódio” e sua fábrica de fake news. “A realidade não é exterior”, diz O’Brien. “A realidade existe na mente humana, e em nenhum outro lugar. Seja lá o que for que o Partido considera a verdade, é a verdade.” Muitos associaram a prática dos “dois minutos de ódio” com o que chamamos, hoje, de “cultura do cancelamento”, naquilo que Tom Zé chama de Tribunal do Feicebuque.
A leitura deste livro como uma profecia pode, no entanto, dar a entender que Orwell errou mais do que acertou. Não houve uma Terceira Guerra Mundial, e a maioria dos regimes autoritários ruiu. Venceu, até o presente momento, a democracia burguesa — mais precisamente aquilo que os filósofos Nancy Fraser e Mark Fisher chamam, respectivamente, de neoliberalismo progressista e de realismo capitalista. Você está sendo vigiado não por um partido, mas por uma corporação. E por escolha própria. A teletela não foi instalada no seu quarto à força. Você optou por ser vigiado e, pior, pagou caro por isso. Sim, você gastou parte considerável do seu salário para adquirir uma teletela que te permitisse a honra de ceder seus dados a uma corporação. Orwell talvez tenha superestimado nosso apego à privacidade.
O próprio Orwell garante nunca ter tentado escrever uma profecia, ou mesmo uma sátira política. É tentador ler 1984 como um roman à clef, que é como os franceses chamam os “romances com chave”, isto é, aquelas histórias que precisam ser decodificadas.
Na altura da publicação, a obra chegou a ser “decodificada” como um panfleto anticomunista, à revelia de tudo o que o autor escreveu sobre o assunto. O brasileiro Millôr Fernandes resumiu a própria posição numa frase que poderia ter sido dita por Orwell: “não gosto da direita porque ela é de direita e não gosto da esquerda porque ela é de direita”.
Não acredito, no entanto, que a intenção política do autor seja relevante. Enquanto em A revolução dos bichos Orwell faz um acerto de contas com a perversão dos ideais socialistas na União Soviética, 1984 vai além, e pode ser lido sem qualquer decodificação. Nele, é a própria humanidade que se vê no espelho.
“Se você quer uma imagem do futuro”, diz O’Brien, no quarto 101, “imagine uma bota pisando em um rosto humano… para sempre.” O mais surpreendente é que, apesar do ciclo interminável de opressão, ainda haverá gente se rebelando, e ainda haverá quem se apaixone. A opressão não tem fim, mas ela sempre vai se chocar com o desejo de liberdade.
O epílogo parece insólito — e talvez o leitor opte por não lê-lo. Afinal, que anticlímax, depois do final apoteótico da trama, um apêndice sobre linguagem. Recomendo, porém, que o leitor não dispense a leitura. A última frase pode representar uma esperança. A novilíngua só será adotada como língua oficial em 2050. Não será tão fácil assim modificar a linguagem. Enquanto houver literatura, haverá resistência.
*GREGÓRIO DUVIVIER é ator, humorista, roteirista e escritor. É sócio do canal do YouTube Porta dos Fundos e comanda o programa Greg News, na hbo.
Posfácio 01
O amanhã é o hoje que nos parece ontem
por Ignácio de Loyola Brandão*
O destino, ou a vida, como queiram, é algo estranho, que tem seus próprios caminhos, e muitas vezes demoramos para atinar com eles. O romance 1984 foi traduzido para centenas de línguas e hoje é considerado um clássico. Tudo o que seu autor criou de fato ocorreu, e de modo impactante, por décadas. Muitas ficções científicas baseadas em “possibilidades” reais acabaram envelhecendo mal. 1984 se faz e refaz continuadamente. Assim como Instruções para se tornar um fascista, da escritora e ensaísta italiana Michela Murgia, o livro de Orwell é um breviário que totalitários devem ler para se reconhecer. Foi mais fácil para Murgia, bastou olhar e copiar o que via. Orwell foi criador, base, alicerce do que se tornou imenso edifício de horror. Mas como estamos vivendo este horror sem nos revoltarmos, sem incômodos e indignação?
Este romance é um best-seller de longa duração. Sabe-se lá quantos exemplares foram publicados. Milhões? Talvez bilhões ao longo de sua polêmica, controversa e assustadora existência. George Orwell viu a primeira edição do livro em 1949, porém morreu a 21 de janeiro de 1950. Teve pouco tempo para ler as primeiras resenhas e notícias, mas sentiu logo a hostilidade de grupos políticos e sociais. A União Soviética e todos os que a seguiam com fervor odiaram e combateram impiedosamente livro e autor (as patrulhas existem há muito), acreditando que ele se referia ao regime comunista, demolido tijolo a tijolo em sua prosa. Iniciou-se uma intensa produção do que agora se chamam fake news para desmoralizar autor e livro. Ainda não existiam os robôs para dispará-las sem cessar dos gabinetes do ódio ao modelo atual, mas foi um projeto estruturado, uma ação organizada. Os Estados Unidos afirmavam que se tratava de um comunista arrependido decidido a solapar o regime de Josef Stálin. Na recente operação Lava Jato brasileira, George Orwell seria visto como um corrupto transformado em delator. A tal ponto chegaram as difamações que, para defender Orwell do tsunami de ataques comandados pela União Soviética — que proibiu a edição — e por seus seguidores no mundo, foi criada uma rede de historiadores, cientistas políticos e sociais, escritores, jornalistas de gabarito e políticos. Sabe-se que ainda hoje circulam defensores de Stálin.
Aqui, a ironia. Tudo o que tinha sido mostrado como ficção no romance acontecia no mesmo momento em que o livro estava indo para as ruas. Orwell repetiu muitas vezes: “Escrevi o que poderia acontecer”. Testemunhamos todas as manobras do totalitarismo. Fascismo, nazismo, Nicarágua, Coreia do Norte, China, Bielorrússia, Venezuela. Chegaram a acusar Orwell de ter se vendido ao establishment, afirmaram que ele era informante da polícia secreta, homem de duas caras, traidor, tudo. Insultos vieram dos radicais, polarizou-se a questão. Conhecemos bem como a polarização gera insultos, agressões, difamações. Edições e reedições se vendiam e Orwell, que passara quase a vida toda na miséria, vivendo em pousadas infames e albergues públicos, desabafou, dias antes de morrer, com os pulmões estourados, aos 46 anos de vida: “Ganhei todo esse dinheiro, e agora vou morrer”, segundo o relato de seu biógrafo Richard Bradford na biografia Orwell: um homem do nosso tempo, recentemente publicada no Brasil. Nos anos seguintes à morte, teria ficado muito rico. Tivesse durado ao menos 75 anos, ou seja, morrendo em 1978, poderia ser chamado de bilionário, porque seus livros mais populares, A revolução dos bichos, publicado em 1944, e 1984, venderam continuamente no mundo inteiro. Vendem até hoje. Livreiros do Brasil divulgaram que entre os livros mais vendidos do segundo semestre de 2020, Orwell figurou com as duas obras. O último romance do autor também alcançou pico de vendas nos Estados Unidos no mesmo período, especialmente após as eleições presidenciais, nas quais o então presidente Donald Trump fez uma série de declarações incorretas ou imprecisas sobre o processo eleitoral.
Vocês acabaram de ler o livro. Ou talvez tenham começado pelo posfácio para ver o que diria o autor de dois romances hoje considerados distópicos dentro da literatura brasileira, Não verás país nenhum e Desta terra nada vai sobrar a não ser o vento que sopra sobre ela. Ficção que terminou sendo praticamente documentária. A todo instante me perguntam: como previu tudo? Você é profeta? Respondo como me respondeu, certa vez, Nelson Rodrigues, nos idos dos anos 1960. Uma tarde eu o encontrei na redação deserta do jornal Última hora a escrever uma de suas histórias para a coluna diária A Vida Como Ela É. Nelson dificilmente viajava (jamais de avião), mas tinha vindo a São Paulo para assistir à estreia de alguma peça sua. Eu, molecão fascinado, fiquei a distância, observando-o fumar e bufar sobre o texto. Gemia, dizia “ummrrmmummrmrm”. Em um intervalo dos bufos, indaguei: “Como o senhor consegue escrever um conto por dia, todos bons?”. Ele pareceu despertar e disse: “Olho pela janela, menino. Está tudo aí na rua. Quando nada vejo, exagero um pouco. Pouco ou quanto eu quiser, pois no final a vida me copia”. Poucos na história refletiram a classe média brasileira como ele.
Não verás. Nos anos 1970, a notícia de que tinha nevado no deserto do Saara me impressionou de tal modo, me pareceu tão absurda, que pensei: a natureza enlouqueceu. Virou de ponta-cabeça. Outra notícia, em que um grupo de cientistas internacionais afirmava que no futuro a água acabaria antes do petróleo, me deixou alerta. A cada momento eu recortava um artigo, reportagem, entrevista sobre o meio ambiente. Certa vez foi sobre como a comida do futuro será toda produzida nos laboratórios industriais. Percebi a verdade disso ao ver um hambúrguer sola de couro plastificado de uma lanchonete estadunidense. Ou as Pringles, as batatinhas em latas redondas. Tudo falso, fictício. De onde criei a comida fictícia. E cheguei à comida factícia, aquela que se come no meu romance, sem sabor, sem cheiro, sem gosto, meleca. Anos mais tarde, e com um arquivo de quatro ou cinco mil notícias sobre poluição, devastação, aquecimento global, oceanos se erguendo em ondas gigantescas e geleiras dos polos se derretendo, vi um ipê de 80 anos ser envenenado por uma vizinha em uma rua de Perdizes, São Paulo, onde morei. E ela confessou: “Sim, matei! Esta maldita árvore sujava a minha calçada com suas flores desgraçadas”. Árvore maldita? Flores desgraçadas? Onde estávamos, em que mundo vivíamos? Estava tudo ficando de ponta-cabeça?
Na mesma época, indo à cidadezinha de Santana do Parnaíba, interior de São Paulo, vi o rio Tietê, um dos maiores do estado, totalmente coberto por uma espuma densa, branca, malcheirosa, produzida pelos resíduos poluentes e venenosos que as indústrias despejam nas águas. Águas mortas. Nas ruas da cidade havia faixas colocadas pelos estudantes:
“Queremos saber,
queremos saber quando nosso rio vai parar de feder.”
Algo se passava no mundo e estava errado e comecei a perceber o que era. Uma tarde senti minha mão coçar, coçar, coçar, tanto que imaginei que eu poderia furá-la com as minhas unhas, e aí me veio o homem do furo na mão, o personagem do romance. Um ser diferenciado no meio da multidão. E os diferenciados incomodam. O aquecimento global, peixes morrendo, espécies animais desaparecendo, automóveis transformados em sucata nas avenidas congestionadas. Não verás país nenhum. Amazonas desertificado, doenças estranhas matando os brasileiros. A roda do mundo girava ao contrário. E a Covid-19, o que é? Pensar que o livro foi escrito em meados da década de 1970. A violência, o totalitarismo, as cidades sitiadas, políticos corruptos fechados em condomínios de luxo (estão todos aí), sprays com cheiros que não existem mais, como o de ovos fritos, bosta de vaca, terra molhada pela chuva, um pêssego cortado ao meio, uvas esmagadas. O resto foi sentar e imaginar o que poderia vir de estranho, maluco, instigante, fora do normal, esquisito, absurdo. Imaginar ao contrário. Achei que ninguém leria. Publicado em novembro de 1981, Não verás vende até hoje. Já vendeu mais de um milhão de exemplares. A vida real copiou minha imaginação. O fantástico está entre nós, convivemos com ele, é mais interessante. Absurdo. Está aí ao nosso lado. Como considerar gripezinha uma pandemia mortífera que devasta o mundo inteiro.
Quanto a Desta terra nada vai sobrar, li uma notícia de que estava sendo produzido um robô que faria tudo, tudo o que um homem faz. Robôs não precisam de cérebro, agem. Na mesma hora nasceu a ideia do primeiro presidente do Brasil sem cérebro, sem coração, e portanto sem compaixão. Um homem para quem a morte é natural, todos morrem, todos vão morrer. E isto foi antes das eleições de 2018. O que aconteceu? Está tudo aí, à nossa volta, ao alcance dos olhos pelas janelas, como dizia Nelson Rodrigues.
Muitas, mas muitíssimas vezes, pensei no processo de criação de 1984, assunto que me apaixona. De onde vieram os temas, ideias, motivos? O quê? Por quê? Como? Nunca encontrei nada que me explicasse Orwell e seu livro, de onde ele teria tirado todo aquele material. Leituras, imaginação exacerbada, notícias de jornal, exageros? O que se percebe é que é um livro estruturado de ponta a ponta. Tudo isso, mais a coragem. Não há vazios, escorregões, incongruências. Caminhamos horrorizados durante anos e anos, dizendo: que loucura viver num mundo assim! E, quando percebemos, estamos dentro dele.
Foi aí que li a vida de Eric Arthur Blair, nascido em Motihari em 1903, território colonial inglês na Índia. Infância complicada, divergências com o pai arrogante e conservador, que tratava os filhos como resultados infelizes de um casamento fracassado. Eric era uma criança chorona, irritante, mas que lia Jonathan Swift e seu As viagens de Gulliver, Edgar Allan Poe. Estudou em Eton, onde teve Aldous Huxley como professor. Como imaginar que mais tarde Huxley escreveria Admirável mundo novo e o aluno, 1984.
Passamos a habitar o mundo descrito neste livro, esteja onde estejamos. Aí está a Semana do Ódio. A teletela que capta todo som produzido, mesmo um sussurro muito discreto. E toda a parafernália atual de internet, microfones, câmeras por toda a parte, hackers? A Polícia do Pensar. O Miniver ou Ministério da Verdade. O Ministério do Amor. A Liga Juvenil Antissexo (um estupendo prenúncio da futura existência de nossa Damares?). A novilíngua.
E os slogans:
GUERRA É PAZ
IGNORÂNCIA É FORÇA
LIBERDADE É ESCRAVIDÃO
(Não saíram da cabeça dos criativos do Planalto?)
A Polícia do Pensar (os blogueiros a serviço do presidente e dos partidos). Os sagrados princípios do Ingsoc, o duplipensar.
É ou não é a nossa realidade, os cuidados que precisamos ter com o que falamos, escrevemos, tuitamos, emailamos? Orwell mostra que “Era terrivelmente perigoso deixar seus pensamentos vagarem em um lugar público ou ao alcance de uma teletela”.
Quanto ao prazer, ao sexo, ao erotismo, à sensualidade, à excitação, às transas, tudo nos lembra o moralismo religioso de pastores, ministros, igrejas que se multiplicaram em busca do dízimo e pregam a castidade, a continência, o medo do pecado, a condenação pós-morte. Castração total. Pois já se pensa até mesmo em “estupro culposo”, em que a vítima se torna ré e o acusado, um santo inocente. Em 1984, a permissão para o ato sexual “sempre era rejeitada se o casal em questão dava a impressão de sentir atração um pelo outro”. Transar era permitido quando se tratava de um “dever com o Partido”. Quando o personagem abraçava sua esposa, “era como abraçar um boneco de madeira articulado”. Ela estava ali, “sem resistir ou cooperar, mas submissa”. Não é o que os pastores pregam em seus templos? Este romance é praticamente um guia, um manual de como viver em um país em que Deus está acima de tudo, em que o sim é não, dois e dois são cinco, se assim o presidente quiser, em que pandemias são conversinhas, em que o fogo da Amazônia é a luz dos cigarros que os caboclos fumam.
A mutabilidade do passado: a nossa nova História, a não ditadura de 1964, o não holocausto. A falsificação dos fatos históricos. Orwell percebeu e nos disse, como se estivesse observando este nosso ano, este mês, este minuto, agora olhando pela janela os dias que passam; “Tudo esmaecia até chegar a um mundo de sombras no qual, enfim, até a data do ano se tornava incerta”.
As fileiras de espiões. A vigia para execução das atividades físicas. (Ele estava vendo o comunismo, o fascismo, o capitalismo, as novas ideologias, o Olavo de Carvalho, o Bolsonaro, os partidos, os marqueteiros, ao nos dizer: “É uma coisa bela, a destruição de palavras. Claro que o grande desperdício está nos verbos e nos adjetivos, mas há centenas de substantivos de que podemos nos livrar também. Não estou falando só de sinônimos; também há os antônimos. Afinal, qual a justificativa para uma palavra, se há outra que é apenas o oposto daquela? Uma palavra contém seu oposto em si própria […] A cada ano, menos e menos palavras, e o campo de consciência um pouquinho menor”.
“Toda a maneira de pensar será diferente. Na verdade, não haverá pensamento, não da maneira como o compreendemos agora.”
E a expressão difundida pelo Ministério da Fartura: “vida nova e feliz”.
Termino com uma revelação que me espantou quando li e que prova que George Orwell era um predestinado. No capítulo 5, o personagem principal, Winston, encontra-se com Parsons, que o detém:
— […] Deixa eu contar por que estou atrás de você. Aquele pagamento que você esqueceu de me dar.
— Qual? — perguntou Winston, automaticamente procurando dinheiro. Cerca de um quarto do salário de cada um tinha que ser separado para contribuições voluntárias, tão numerosas que era até difícil de acompanhar.
Admirável autor que já sabia das futuras “rachadinhas” do filho do presidente.
*IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO é jornalista, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). Em meio à sua vasta obra literária, traduzida para diversas línguas, se destacam os romances distópicos Não verás país nenhum (1981) e Desta terra nada vai sobrar a não ser o vento que sopra sobre ela (2018).
Posfácio 02
A esperança vem do plural
por Débora Tavares*
Uma das indagações mais recorrentes sobre 1984 gira em torno de como o livro antecipou o futuro e, supostamente, situações do mundo contemporâneo, principalmente no campo da tecnologia e da privacidade. George Orwell é colocado no patamar de um Nostradamus das telas inteligentes. No entanto, com o passar do tempo o conceito orwelliano teve seu propósito distorcido: em vez de simbolizar uma crítica à manipulação política da linguagem, passou a ser relacionado ao sofrimento distópico e à ausência de subjetividade perante um governo autoritário.
Porém, na maioria das vezes, passa despercebido o fato de ainda estarmos rendidos às mesmas normas e contradições sociais que deram fruto a essa obra nos anos 1940. Ainda estamos presos a amarras de uma lógica que propaga a desigualdade e o sofrimento. As aflições de Winston Smith diante de um mundo opressor e desigual reverberam na atualidade, pois foram poucas as transformações sistêmicas desde então.
Isso significa que, anacronismos à parte, as regras do jogo continuam as mesmas. Oligopólios, exploração, desigualdade são o denominador comum de um modo de vida em que a grande maioria das pessoas sobrevive em condições precárias, alimentando uma cadeia que sustenta uma ilusão: a de que esse sistema é imutável. Orwell foi capaz de entender as tessituras profundas que amarram e mantêm em pé essa lógica, e seu olhar cirúrgico dialoga profundamente com todos aqueles que ainda sentem na pele os ecos da injustiça. O narrador de 1984 se direciona para uma manifestação específica dessa desigualdade: o totalitarismo. É por meio do enredo satírico do romance que se forma uma visão analítica precisa, afinal a principal caraterística de uma obra distópica é o comentário sobre o cenário social de sua época. Dessa forma, Orwell parece estar muito mais próximo de célebres figuras que interpretaram o mundo do que de profetas que vociferam o destino da humanidade aos quatro ventos.
Esse olhar analítico permite que 1984 continue, ao longo dos anos, tomando novas dimensões, justamente pelo fato de ainda estar muito próximo dos obstáculos que enfrentamos no tecido social. Quando nos propomos a um mergulho profundo nas pistas que o narrador do romance revela, abre-se diante de nossos olhos a trama de contradições exclusiva de uma parcela específica da população: aqueles que precisam trabalhar em troca de uma quantia de dinheiro. Em outras palavras, a teia de contradições na qual Winston Smith se encontra é muito semelhante à de trabalhadores dentro do sistema capitalista de produção.
Para entender como essa teia se constrói, precisamos compreender a fundo o lugar que o protagonista ocupa dentro do mundo totalitário da Oceania. Winston é funcionário do Ministério da Verdade, responsável por manipular informações a mando do Partido do Grande Irmão, de forma que o fruto de seu ofício são ideias. Assim, seu trabalho está muito distante da rotina de um proletário, no maior estilo Charles Chaplin apertando porcas no filme Tempos modernos. Winston opera com ideias e sua capacidade de trabalhar o insere na camada mais intelectualizada da Oceania. Dentro da divisão social de classes do romance, o lugar de nosso protagonista é de determinado privilégio, pois ele não é explorado de maneira física, e sim abstrata.
Tendo isso em mente, podemos dividir a estrutura social de 1984 em quatro camadas, como em uma pirâmide: na base, estão os proletas, à margem da sociedade e explorados de maneira braçal, abandonados e esquecidos pelo sistema; um pouco acima ficam os funcionários do Partido, que ocupam um lugar mediano, lidando com questões burocráticas e de informação, entre os quais estão Winston e Julia; em um lugar mais elevado ficam os membros do núcleo interno do Partido, responsáveis pela tomada de decisões, tal como O’Brien; e, no topo, o próprio Grande Irmão, acima de tudo e de todos, em contraposição ao seu inimigo Goldstein — ambos figuras que se concretizam apenas no discurso, sem que ninguém saiba afirmar ao certo se existem.
Ao examinar essa densa rede de relações, podemos perceber como o romance representa sistemas de poder existentes na época em que foi escrito, e, consequentemente, repercussões em nossa contemporaneidade. O próprio título da obra já nos alerta para a proximidade da estória com a História — 1984 é uma inversão da data 1948, ano em que Orwell escreveu o romance, na longínqua e gélida ilha de Jura, na Escócia. Quando percebemos como esse panorama opera no enredo, fica evidente a divisão cunhada na iniquidade, em que as questões sociais se transformam em problemas também dentro do enredo. Em Oceania não há paz, não há liberdade, tal qual no pós-guerra europeu.
E, em meio a esse emaranhado, em uma rotina repetitiva e monótona, Winston se encontra constantemente insatisfeito com o que vê. As ruas empoeiradas, os apartamentos sob o constante monitoramento das teletelas e os cartazes espalhados pela Londres onde o Grande Irmão observa tudo e todos. Diante de um cotidiano enfadonho, nosso protagonista procura uma saída. Para isso, começa a cometer pequenas infrações, em desobediência ao sistema que o corrói. E suas escolhas disruptivas — como tudo dentro dessa obra — são cirurgicamente simbólicas: a escrita do diário como solução à vigilância constante, os objetos antigos adquiridos ilegalmente no bairro dos proletas como um resgate do passado aniquilado, seu caso de amor com Julia como uma tentativa de romper com o controle dos corpos e da subjetividade.
Aos poucos Winston manifesta sua repulsa pelo mundo degradado ao seu redor e, nas pequenas fugas, ele acredita construir uma rebeldia contra essa lógica. Quem usufrui desses pequenos lapsos de desacordo e ruptura? A escrita do diário funciona como um momento de catarse solitária, assim como o envolvimento amoroso ou a compra dos objetos antigos, do chocolate amargo. O protagonista trava uma batalha na qual é o único combatente. Dessa forma, ele procura resolver na esfera privada toda a penúria que toma conta do contexto social.
Winston é repleto de falhas e contradições, assim como a sociedade que o cerca. Essas ambivalências surgem de maneira evidente quando percebemos que ele será o único a usufruir dessas pequenas fugas do olhar vigilante do Grande Irmão. Ele parece entender como o mundo funciona, manifestando suas indagações no diário “Eu entendo COMO: não entendo o PORQUÊ”. O protagonista observa diariamente que existe uma minoria dentro do Partido que desfruta do esforço feito pela maioria, porém seu descontentamento parece abarcar somente a si. Esse é um panorama de insatisfações muito semelhante ao do sujeito contemporâneo que ocupa o mesmo lugar social de Winston.
E aqui está a profunda contradição de nosso protagonista: ele deseja romper com o sistema que o destrói, mas falha em desenvolver um nível de consciência que o situe dentro das relações sociais mais profundas, sendo uma presa fácil para as armadilhas ideológicas gestadas pela sociedade totalitária. O protagonista cultiva um extenso propósito de transgressão, no entanto é massacrado por artimanhas de controle do Grande Irmão, justamente pelo fato de tentar destruir solitariamente algo que assola as pessoas em um patamar mais amplo.
E por que afinal Winston escolhe um caminho solitário?
Em uma sociedade cujos alicerces estão pautados no egoísmo e na ausência de liberdade, a rebeldia isolada parece ser o único caminho possível. Escapa ao nosso protagonista, cujas privações são de todas as ordens, levar em conta que uma outra possibilidade para soltar-se das amarras do Grande Irmão estaria na primeira pessoa do plural, e não na do singular.
Um lampejo de esperança dentro da Oceania, uma reinvindicação politizada, é a Irmandade de Goldstein. Mas há um entrave nela: é tão secreta que ninguém sabe se existe de fato. A única evidência que sobreviveu à censura do Ministério da Verdade é um manual, que explica o funcionamento das ideias que sustentam o regime totalitário do Partido. Winston e Julia têm acesso a esse manual por meio de O’Brien que, no final das contas, usou o livro de isca para atrair rebeldes como eles.
Esse texto não passava de um estratagema para capturar possíveis insurgentes que se manifestassem contra a ordem. Ou seja, o verdadeiro autor do manual não é o opositor Goldstein e a suposta Irmandade, mas sim o próprio Partido — o olhar atento à linguagem percebe a simetria entre Irmandade e Grande Irmão. Após ganhar a confiança de quem não suporta mais viver sob domínio de um estado totalitário, O’Brien ludibria Winston e Julia com falsas promessas, para só depois revelar que Goldstein nunca existiu. O desfecho daqueles que ousam escapar dessas amarras reside nos cômodos do Ministério do Amor, onde não há escuridão.
Ao suprimir literalmente qualquer possibilidade de reivindicação e transformação sistêmica, o Partido deixa bem claro que todos aqueles que buscam uma rota alternativa encontrarão um único destino: a tortura. O controle das ideias na Oceania se manifesta de forma mais sedimentada quando atinge o nível da linguagem, na novilíngua — o duplipensar, a coexistência dos opostos que justamente distorce a realidade e cria a sensação de que apenas o Partido pode ter controle de qualquer situação.
A linguagem no mundo do Grande Irmão tem um caráter de profunda destruição, unindo palavras sinônimas e antônimas (como em “desescuro” para se referir a “claro”, o contrário de “escuro”) e, finalmente, acaba por impedir a expressão de qualquer opinião contrária à do regime do Partido. Essa é uma entre tantas das artimanhas de manipulação utilizadas por esse sistema totalitário. Tal procedimento funciona como uma metáfora poderosa, de um Estado capaz de infiltrar-se em todas as esferas da sociedade, disseminar mentiras e manipular informações no verdadeiro conceito de “orwelliano”: a partir da distorção política da linguagem. Frequentemente nos deparamos com situações orwellianas: o aumento das fake news, as distorções de informações feitas por líderes totalitários. Alterar fatos é uma maneira de se posicionar politicamente, que ocorre no patamar da linguagem. Isso dialoga profundamente com a função social que a linguagem opera dentro de 1984. Manipular a linguagem com um propósito político apenas funciona pois a população (tanto da Oceania, como dentro do capitalismo) se encontra desprovida de direitos elementares — educação, saúde e moradia — e é incapaz de evitar esse controle.
A análise que leva em conta apenas o desfecho de nosso protagonista parece soturna e ausente de um lampejo de esperança. Contudo, o narrador orwelliano nos convida a olhar para além de Winston: ao observar o apêndice, em um tempo posterior à fracassada jornada de nosso herói, percebemos que existe algo após o sistema do Grande Irmão. O apêndice revela que a obliteração do pensamento e da linguagem na novilíngua ainda não se concretizou em sua plenitude. E essa concretização é posta em uma segunda projeção temporal: a de que a obliteração da liberdade de ideias e a condensação da linguagem só haveria de ocorrer de fato no longínquo — agora nem tanto — ano de 2050.
Novamente estamos diante de um dilema: a paranoia acerca da profecia orwelliana. Será que o narrador adivinhou a extensa vigilância que opera o século xxi? É preciso lembrar que o abismo é muito mais profundo, de forma que o uso das datas procede como mecanismo satírico, criado com afinco pela voz narrativa para ironizar e criticar situações de seu momento histórico de produção, os anos 1940. A projeção do apêndice para o ano de 2050 serve como um lembrete: esse tipo de manipulação das ideias é sistêmico, faz parte da estrutura desse tipo sociedade controlar por meio da linguagem, das ideias. Assim, o apêndice mostra que enquanto a sociedade se organizar em torno de uma estrutura desigual e controladora, o papel principal do discurso linguístico será o de reforçar essas normas. O sistema do Grande Irmão se mantém em pé pois se segura com todas as forças na novilíngua e no duplipensar.
Por outras palavras, um modo de viver totalitário pautado na manipulação, traz em si o apagamento da liberdade e a supressão de possibilidades de levantes coletivizados. Questionar as origens dessas estruturas contraditórias é um dos passos que Winston se mostra incapaz de tomar, pois escolhe romper somente com aquilo que o afeta. E esse procedimento é recorrente no tecido social, conforme nos lembra o professor Noam Chomsky: “Quando as pessoas ficam mais alienadas e isoladas, começam a desenvolver atitudes altamente irracionais e muito autodestrutivas”¹.
Dessa forma, o mundo de Winston não está nem um pouco distante do nosso. A potência de 1984 reside na capacidade de expandir o nosso olhar para que sejamos capazes de refletir sobre o que existe à nossa volta. O próprio Orwell já havia afirmado no ensaio “Por que escrevo”: “a boa prosa é como uma vidraça”². Pela janela límpida e transparente da escrita orwelliana conseguimos compreender profundamente a rede de tensões da vida em sociedade. O ponto de partida do narrador não é o de criar uma obra de arte nos termos ortodoxos pautados por uma erudição esvaziada. Sua prioridade é expor falácias ou trazer atenção para algum acontecimento. A partir dessa preocupação, a linguagem dentro do romance se faz enriquecida pelas nuances sociais, conjugando conteúdo e forma.
O esforço de observar as engrenagens do sistema sendo representadas em personagens, descrições e argumentos retoma a relevância política de um autor como George Orwell no combate ao poder dominante e às instituições sancionadas. Seu olhar se concentra na crítica profunda das contradições de uma parte média da sociedade, ocupada pelo nosso protagonista. Ao revelar sua pequenez, o narrador orwelliano assinala o papel fundamental da classe trabalhadora.
A voz narrativa escancara que a podridão do sistema não está em sua base, os proletas, deteriorados pela marginalização e, sim em sua superfície: no bolor dos salões elegantes, repletos de opulência, nos núcleos internos do Partido. A saída não parece estar em meio ao tilintar de taças de champanhe e acordos esvaziados. A esperança surge justamente em meio aos lugares mais insólitos, nas beiradas mais abandonadas pela norma sancionada, conforme Winston afirma no diário: “Se há esperança, está nos proletas”.
*DÉBORA REIS TAVARES é mestre e doutora pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), onde pesquisou a obra de George Orwell e sua relação com a História. Atua como professora, oferecendo cursos livres sobre literatura e sociedade.
¹ Tradução livre de: “When people grow more alienated and isolated, they begin to develop highly irrational and very self-destructive attitudes”. CHOMSKY, Noam. How the World Works: Interviewed by David Barsamian. Berkeley: Soft Skull Press, 2011, p. 131.
² ORWELL, George. “Por que escrevo”. In: Dentro da baleia e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
Posfácio 03
Eterno 1984
por Eduardo Bueno*
Tinha 14 anos quando li pela primeira vez 1984. Estávamos em 1972 — faltavam, portanto, só 12 anos para que a cronologia e o título da obra entrassem em sintonia. A questão era que, para mim, 12 anos eram a eternidade e mais um dia: eles não só configuravam quase a totalidade de minha vida, como cedo percebi que, quando 1984 de fato raiasse, eu teria 26 anos. Vinte e seis anos! Oh céus, um idoso pelos padrões de um guri de 14.
Fora meu irmão mais velho quem me repassara o livro. Ele tinha 18 anos, militava no centro acadêmico da faculdade e estava ingressando no curso de jornalismo. Alguns de seus colegas já tinham sido presos, outros estavam no exílio, vários eram vigiados por agentes de segurança, e o jornal em que logo começaria a trabalhar (e no qual, em agosto de 1976, eu também iniciaria minha carreira) convivia com a presença diária de um censor. No colégio, eu era obrigado a fazer redações louvando a Transamazônica e as tais 200 milhas marítimas. Meus pais elogiavam o então presidente Médici e havia cartazes de “Procura-se” com o retrato de “terroristas” espalhados pela cidade.
O período que separava o ano em que ganhei o livro e 1984 configurava, portanto, uma espécie de enigma temporal indecifrável para mim, pois me parecia ao mesmo tempo remoto na cronologia e assustadoramente presente no dia a dia. Mais ainda porque o Grande Irmão, “Big Brother”, era personagem tangível: ele podia ser visto e ouvido todas as noites no noticioso, levado ao ar aliás pela mesma emissora na qual faria estrondoso sucesso, trinta anos depois, com outra roupagem mas o mesmo nome, tão logo as pessoas percebessem que privacidade não era, no fim das contas, um valor tão relevante para elas…
Os anos foram se passando — como costumam fazer, tanto na ficção como fora dela — e então, como era de se supor, o verdadeiro 1984 chegou. No Brasil, paradoxalmente, levou consigo a ditadura militar e, já no ano seguinte, a abertura “lenta, segura e gradual” se materializou no jaquetão e no bigode de José Sarney. Eu trabalhava então na editora L&PM, de Porto Alegre, que lançou… 1985, o livro de Anthony Burgess. No livro, Burgess argumenta que, em 1984, Orwell na verdade trata da Inglaterra de 1948: um país em ruínas, com cartões de racionamento, imprensa submissa, vigilância policial, paranoia e um odor onipresente de sopa de repolho.
Profeta com o olhar voltado para trás (o sórdido passado imperial da Inglaterra) e historiador prevendo o futuro (um futuro do pretérito sombrio e assombroso), Orwell, jornalista de formação, foi um cronista do seu tempo, dos tempos pregressos e dos tempos do porvir. Portanto, não interessa exatamente em que ano você está lendo este livro. Se no momento em que se completam os 70 da morte de Orwell e, por isso, seu legado entra em domínio público (tornando-se legalmente aquilo que no fundo sempre foi: um tesouro que pertence a toda a humanidade) ou se, como um manuscrito numa garrafa, a presente edição viajou no mar do tempo até chegar à sua praia, aí e agora.
Como quer que seja, aposto que ao mergulhar na história você vai achar que 1984 continua a se passar no futuro. Precisei de alguns anos para perceber que nesta obra George Orwell fala simultaneamente do passado e de um futuro que estão sempre presentes quando e onde quer que germine a semente do totalitarismo. E a semente do totalitarismo está sempre pronta para germinar.
*EDUARDO BUENO é escritor, jornalista, tradutor e comanda o canal do YouTube Buenas Ideias, em que discute a história do Brasil de forma bem-humorada.
Posfácio 04
1984: o nosso e o de Orwell
por Luiz Eduardo Soares*
Minha geração testemunhou os horrores da ditadura instalada pelo golpe militar de 1964, pagou caro pela resistência e se comoveu com o triunfo da democracia, embora consciente de seus limites. Promulgada a Constituição, em 1988, que concluía a transição e consagrava direitos civis e sociais, sentimos que estávamos prontos para a grande tarefa de reconstruir o país, voltando a nos identificar com o que essa nação plural prometia representar, livres para amar sua cultura insurgente e criativa. O futuro nos convocava para o trabalho duro e para a festa. Tínhamos atravessado o banho de sangue, dispostos a preservar a memória das trevas e honrar suas vítimas. Era preciso reafirmar a cada instante o compromisso: ditadura nunca mais. O fato é que havíamos derrotado a violência estatal, patrocinada pelo imperialismo e por seus acólitos, os tripulantes do capitalismo autoritário nativo. Viramos o jogo, estudantes, intelectuais, artistas, sindicalistas, sacerdotes, cientistas, jornalistas, profissionais liberais, trabalhadores e trabalhadoras do campo e das cidades.
Uma década antes, em 1979, tínhamos celebrado a primeira conquista: chegara a hora de botar água no feijão e recepcionar quem voltava do exílio, com o abraço adiado por tanto tempo. Mas a ditadura não se rendeu facilmente. A “descompressão”, além de lenta e gradual, foi atribulada, manchada por mais torturas e assassinatos, atentados contra líderes da oposição, espasmos, recuos, motins e ameaças, oriundas dos porões e da cúpula. Ingressamos nos anos 1980 ainda imersos em medo e incerteza. Faltava sepultar Leviatã. Embora debilitado e decadente — suas bases de apoio erodidas pela crise econômica, a concentração de riquezas contrastando cada vez mais com a miséria devastadora —, o regime retardava seu fim, buscando evitar rupturas e diluir, na continuidade, as evidências de sua natureza brutal. Entretanto, quando nossa história se encontrou com o tempo ficcional de George Orwell, a força popular já não podia ser contida.
Na tarde ensolarada de 10 de abril de 1984, estávamos — a legião de amigos e companheiros que formavam a rede de lealdades e afeto que chamo “geração” — na Avenida Presidente Vargas, no centro do Rio de Janeiro, como tantos estiveram e estariam reunidos em outras cidades. Mal conseguíamos nos mexer, afogados num mar de gente, um milhão de pessoas clamando em coro “eleições diretas, já”. Aquele era o dia mais emocionante de nossa vida. Sabíamos que as eleições não viriam imediatamente, mas acreditávamos que o caminho estava pavimentado e que o processo não tinha volta. Esse lugar vazio e acolhedor, o futuro, esperava por nós. Bastava manter o passo e não dispersar. Ninguém soltaria a mão de ninguém. Chegaríamos lá juntos, em lágrimas e júbilo. Nada nos deteria. Romperíamos barreiras, saltaríamos armadilhas, pularíamos muros, destravaríamos os cadeados dos portões. Fertilizaríamos com nossa paixão o solo do mundo que se abria. Paixão por liberdade. Não era preciso fazer proselitismo pelo comum, a fraternidade era o ar que respirávamos. Havia amor em SP, no Rio, país afora.
Às treze horas de um dia frio e luminoso de abril do mesmo ano, Winston Smith, o protagonista do romance de Orwell, queixo enfiado no peito no esforço de esquivar-se do vento cruel, passava depressa pelas portas de vidro das Mansões da Vitória. Ele voltava para casa, mas a casa nada tinha a ver com espaço de intimidade, refúgio privado, ambiente protetor. Era apenas outra arena em que se exercia a vigilância inescapável do Grande Irmão, figura paradoxalmente onipresente e ausente, síntese da incidência capilar do poder, personificação do Partido e do Estado, cuja fusão constituía o fundamento do poder totalitário. No interior do apartamento, a experiência persecutória se reproduzia sem trégua. Nenhum recanto escapava à inspeção pan-óptica¹ e à audição apuradíssima das teletelas, aparelhos que transmitiam e captavam imagens e sons, TVs que nunca desligavam, nem emudeciam.
Nas ruas do Rio e das cidades brasileiras, o entusiasmo era coletivo, ninguém estava só, e marcharíamos juntos, porque essa era a escolha individual de cada um e de cada uma. Compartilhávamos expectativas positivas, que se cumpririam na medida em que nossas ações políticas fossem virtuosas, isto é, capazes de fazer as convicções dialogarem com os limites impostos pela fortuna — o incontrolável e imprevisível. Sim, nós havíamos lido Maquiavel, devoráramos os livros para abastecer a esperança, porque, afinal, não bastava a fé, embora a teologia da libertação não costumasse falhar.
Na Londres distópica, a melancolia letárgica abatia a coletividade, composta por solidões avassaladoras de sujeitos crescentemente desprovidos de subjetividade, esvaziados de afetos — exceto o medo e o ódio, e eventualmente o ufanismo cego — e reflexividade, memória e imaginação, expropriados de passado e futuro, impotentes, despojados de desejo e protagonismo, servos da fortuna. O destino era comandado pelo Partido e, portanto, produto do engenho político. Nada era gratuito e indeterminado. O Partido-Estado era onipotente e estava em toda parte. A própria guerra permanente não passaria de um jogo tacitamente combinado, equilibrado e interminável, entre as três potências mundiais, Oceania, Eurásia e Lestásia.
Naquele abril carioca distante, na Presidente Vargas, a multidão jamais acreditaria que, 34 anos depois, tendo conquistado uma nova Constituição e o direito ao voto, a sociedade elegeria o fascismo, redimindo o passado mais sombrio, exaltando torturadores. Nos anos subsequentes ao imenso comício da Candelária, confiantes na Nova República que emergia, quem de nós suporia que, nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil, três décadas depois, o negacionismo obscurantista vingaria, não como ignorância involuntária ou alienação, mas como postura altiva de cidadãos letrados, armados com dispositivos tecnológicos sofisticados, recrutando milhões de adeptos para suas causas regressivas e milhares de ativistas para sua política de ódio, legitimação do racismo e naturalização da barbárie?
Winston Smith nunca se iludiu. Sempre soube que o Grande Irmão venceria. Sabia que seria implacavelmente punido quando ousou escrever notas em um diário, quando amou Julia, quando alugou o quartinho no antiquário do sr. Charrington, quando aderiu à nebulosa Irmandade, liderada pelo arqui-inimigo do regime Emmanuel Goldstein. Winston não foi indulgente consigo mesmo, jamais se permitiu a autocomiseração e o autoengano, nem se deixou levar por esperanças vãs. Cumpriu seu destino, só isso, como o fizeram os personagens das tragédias gregas. Transgrediu a ordem, conhecendo previamente a sentença inclemente que lhe caberia, muito pior do que a morte. Todos, no fundo, sabiam (ou temiam saber) o que era o quarto 101, o que ele continha, qual segredo monstruoso ele guardava. A resposta era a mesma para todos, sendo sempre diferente, porque o horror tem mil faces, sendo sempre o que é: inabordável, refratário à elaboração simbólica, fronteira intransponível, dissipação, ruína do eu soberano. A morte é benigna porque arrasta consigo a consciência da aniquilação. O quarto 101 preserva o lume da consciência, vagamente, no fundo do abismo, para que o sujeito testemunhe sua própria liquidação. Combinação atroz entre o fim e a eternidade, não seria essa a definição canônica do inferno?
O quarto 101 esteve sempre à espera de Winston, preparado especialmente para ele, exclusivamente para ele, exatamente como a literatura para o leitor, o pronome “eu” para o sujeito e a porta da justiça para o cidadão, no conto “Diante da Lei”, de Franz Kafka, com a diferença de que, na parábola kafkiana, a entrada exclusiva jamais permitiria o acesso do protagonista, embora a ele destinada, e se fecharia com sua morte. O inferno personalizado, na obra de Orwell, serve para virar o sujeito pelo avesso, esvaziando-o, destruindo o que nele seria singular, e preenchendo a carcaça com o combo Grande Irmão: novo passado — que embute presente e futuro —, novas disposições afetivas: o medo metabolizado, que se converte em vago amor pelo pai-grande-irmão, o ódio dirigido aos inimigos do regime e o ufanismo regulado. Dá-se um ritual de passagem invertido, que determina a regressão do neófito, não seu crescimento, e seu extravio, não sua inclusão. O que permanece, e nesse contexto se ressignifica negativamente, são as escarificações, as insígnias do poder absoluto inscritas no corpo, evocando os mandamentos: a coletividade acima de todos, o Partido acima de tudo.
Interpretações da obra do autor francês Marquês de Sade a valorizam pela audácia de atribuir autonomia à literatura, libertando-a de amarras tão ampla e profundamente assimiladas que sequer são percebidas como tais, assim como pelo esforço de levar ao extremo a moralidade, que se mostra perversa quando reduzida ao exercício prático de um valor abstrato ou ao cumprimento mecânico dos princípios, sem mediações. A filosofia na alcova, Justine e 120 dias de Sodoma exporiam as vísceras repugnantes de um real que se reduzisse à efetivação de teses racionais, descarnadas: inteligência pura em ato aplicando cálculos racionais sem empatia. Caso o marquês maldito tivesse intitulado suas obras com datas futuras, talvez as estivéssemos discutindo ao lado de 1984. O’Brien se sairia muito bem entre os bacantes aristocráticos concebidos por Sade. Ele fala, argumenta, fundamenta seu discurso e testa suas hipóteses no corpo torturado. Ao contrário dos demagogos e idealistas, O’Brien mantém-se estritamente fiel à verdade que reconhece, verifica empiricamente e constrói. O’Brien não tinha nenhum problema em admitir: o Partido não visa o bem comum, o que não significa que os dirigentes se movam por interesses econômicos. O poder é visado enquanto tal. Nada além, e isso basta, embora se reponha incessantemente. O poder totalitário é possível, sustenta o torturador. Winston está ali para confirmar a tese e realizá-la, por isso foi cercado até cair na ratoeira. Ele não poderia ser a exceção. Não há exceções, a menos que o personagem seja “proleta”, membro do bando incapaz, impotente e inepto. Os proletas são o Outro marginalizado, espelhando o Grande Irmão, esse Outro que é centro, medida e critério, eixo que dá sentido à própria polaridade “dentro-fora”, “incluído-excluído”.
O Poder supremo não concede a autoridade doméstica a pais e mães; gera crianças monstruosas que devoram os pais, ignorando-os, atacando-os e os denunciando ao Partido. Na adolescência, elas são recrutadas pela Liga Juvenil Antissexo e começam a sofrer mutilações simbólicas que as condenam à servidão, ao tormento excruciante de uma infância perpétua.
1984 é muito mais que um romance ou uma ficção distópica. Desde que foi publicado, em 1949, faz parte do imaginário social. Mesmo quem não o leu, cita-o com intimidade. A importância da obra, por um lado, garantiu-lhe reedições sucessivas, por outro, a tornou alvo de juízos equivocados e preconceitos. O exemplo mais notório talvez seja aquele segundo o qual a obra-prima de Orwell seria mero panfleto anticomunista, aliada do macarthismo² e dos capitalistas na Guerra Fria, e teria promovido a apropriação politicamente interessada de uma categoria superficial e ideológica, o totalitarismo. A primeira crítica não resiste à leitura, a não ser que se considerem sinônimos stalinismo e comunismo, e que se suponha que repudiar o ditador soviético implique, necessariamente, defender o capitalismo. Não por acaso, a obra é simpática a Leon Trótski, que inspirou o personagem Goldstein, maior inimigo do Grande Irmão. George Orwell era o pseudônimo de Eric Arthur Blair, adepto do socialismo democrático e libertário, crítico ácido do capitalismo e de todas as formas de autoritarismo. A sociologia que se divisa no universo criado por 1984, contudo, evidentemente não cabe no marxismo, ao menos em suas versões ortodoxas, porque em Oceania o poder não é redutível a interesses econômicos. Quanto ao totalitarismo, esse é o nome do jogo, é o símbolo de uma disputa, em 1984, e é também o símbolo em disputa. Não se trata de ciência política. Tal como a leio, a obra faz circular uma energia angustiante e disruptiva cuja origem é a fricção entre duas pulsões político-estéticas: aquela que anseia pela totalidade — a plenitude, a unidade sem fissuras, o domínio absoluto, a hiperfuncionalidade sistêmica — e aquela que altera e antagoniza a primeira, e que anseia por fratura: a pulsão que subtrai. Dois mais dois são quatro ou cinco?, pergunta O’Brien, movendo os dedos acima do rosto de Winston, na culminância da tortura. Tem de ser cinco, se for essa a vontade do Partido, adverte O’Brien, porque — e aqui incluo o que, a meu juízo, o algoz silenciou — porque nunca poderia ser três, o desejo rebelde de furtar-se ao todo jamais seria tolerado, subtrair(-se) era o crime mais hediondo. A alternativa que cabe na cabeça do torturador está entre a verdade, quatro, e a manipulação operada pelo Partido, cinco. O’Brien, tenaz e pacientemente, calibra os tormentos infligidos à sua vítima. Quer abrir a mente de Winston para que ele espontaneamente se convença de que cinco pode corresponder a uma verdade alternativa. Mas O’Brien jamais menciona a subtração, signo do grão que se desprende do todo. Essa hipótese daria um nó nas tripas do Leviatã. A capitulação que O’Brien está disposto a aceitar e que o levaria a suspender a tortura não pode ser simples tática intelectual, mentira para sobreviver. Winston precisa oferecer ao algoz sua consciência em sacrifício, mais ainda, tem de sacrificar-se enquanto sujeito, dissolvendo-se no todo. A rendição de Winston deve corresponder ao triunfo do uno. Todavia, a trama (o enredo e a lógica intrínseca à narrativa) não reina absoluta, porque, na literatura, a escrita é soberana. Em seu espaço, o desencaixe sangra o sistema e não se deixa usurpar pela pretensão totalizante da trama. Ou seja, mesmo sendo um personagem racional e sensato, e sabendo que era impossível subtrair-se, Winston age, risca o papel, segue Julia ao campo, frequenta o antiquário, aluga o quartinho, subverte a ordem. Aí é que está a literatura, e a vida do personagem, nessa falta de nexo. Por isso, 1984 é obra literária maior, a despeito da aparente unidimensionalidade caricata. O eixo da trama aderna, a força passa por fora.
Winston rebelou-se não para se manter fiel a algum dever moral ou político. Seus atos, um depois do outro, pequenos, quase todos, vinham em geral antes de qualquer elaboração intelectual, apresentavam-se à sua consciência como fatos reais que ele mesmo produzia, portanto conhecia, fatos que não poderiam ser apagados de um passado que seria só seu, preservados em sua memória, ela mesma refratária ao negacionismo manipulador que o Ministério da Verdade operava. Winston travava a luta pela sanidade, para manter a todo custo uma reserva externa à unidade totalitária, reserva para sua existência subjetiva. O Partido podia desconstruir a história coletiva e reinventá-la como quisesse, apagando os rastros de acontecimentos e pessoas, inclusive forjando uma nova língua avessa a heresias e ao pensamento crítico, mas não penetraria o enclave que Winston criava com seus atos singulares, fontes de uma memória solipsista, mas autônoma, habitada por emoções rebeldes às regras. Ele mesmo confessará essa estratégia, nas conversas perversamente socráticas com seu algoz. Julia foi fundamental porque sua presença, a objetividade de seu corpo, a alteridade de seu desejo, o sono e a voz, impunham limite ao solipsismo, inaugurando a possibilidade da conversa, aquém e além do diálogo interno.
A consciência gauche de Winston, desafinada e em desordem, foi o tributo pago pela trama à vitalidade do personagem. Era preciso que houvesse um ponto de luz, um poro, a brecha por onde a experiência da leitura pudesse passar, com seu carrilhão de afetos, crenças e valores, projetando, na sombra do romance, suas próprias sombras. A brecha está no desvão que emancipa Winston (e seus descaminhos) da sistematicidade coerente e coercitiva da trama, da abrangência totalizante do enredo, no qual, à imagem e semelhança de seu objeto, o totalitarismo político, tudo se explica, tudo funciona, tudo faz sentido, tudo tem seu lugar e cada instante é etapa de uma trajetória evolutiva unívoca. Winston é o excesso, a exorbitância que promove uma fissura no bloco mineral, energizando os filamentos da trama e das subtramas, desencadeando um curto-circuito que, potencialmente, desestabiliza o poder: há lacunas, afasias, balbucios e canções entoadas sem razão por mulheres gordas e belas, pássaros entre olmos, e, adormecida, uma cidade proleta sob a cidade de pedra. Por que descrer no despertar feroz?
O caminho que Winston percorre não faz sentido, se ele sabe o que sabe, a menos que introduzíssemos conceitos da psicanálise como culpa ou pulsão de morte; mas a trama exorciza a psicologização, ao narrar-se em terceira pessoa, colada à mera descrição de atos e fatos. Esse problema é a solução, o mal-entendido instala a literatura no lugar do entretenimento. Esgarçada a lógica centrífuga da trama, a leitura pode transitar até o subsolo do horror e nos cativar, mesmo lá, no escuro, e nos enlaçar. O enlace ancora a verossimilhança e aciona o encanto da leitura.
Se, em 1984, na Presidente Vargas, a sombra era uma possibilidade do novo mundo que começávamos a construir — afinal, havia uma história de opressão e racismo a nos contemplar —, o inverso também é verdadeiro na distopia de Orwell. O romance guarda em segredo a utopia. Talvez o segredo seja exatamente o segredo, isto é, talvez a mensagem seja essa: é preciso proteger a utopia da luz do sol e da apropriação imediatista por espíritos exaltados, desesperados da longa peregrinação, descuidados da literatura, da arte, da pluridimensionalidade da vida. Ela está aí, a utopia, e se deixa fruir e gastar no evento de sua descoberta, mas logo se recolhe para continuar semente e dúvida. Animados pela certeza, corremos o risco de descrer na potencialidade ruinosa das sombras e de gestar, por negligência, a negação de nosso desejo. Guardada, a utopia suscita hesitação, mas não impede o impulso e, por nos fazer duvidar, talvez o torne mais poderoso. Quem sabe?
*LUIZ EDUARDO SOARES é escritor, dramaturgo, antropólogo, cientista político e pós-doutor em Filosofia Política. É professor visitante da UFRJ, professor aposentado da UERJ e ex-professor do IUPERJ e da Unicamp. Foi pesquisador visitante nas Universidades Harvard, Columbia, Virginia e Pittsburgh. Publicou 20 livros, dos quais os mais recentes são: Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos (Boitempo, 2019), O Brasil e seu Duplo (Todavia, 2019) e Dentro da noite feroz: o fascismo no Brasil (Boitempo, 2020). Foi Secretário Nacional de Segurança Pública, Sub-Secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, além de Secretário Municipal de Prevenção da Violência em Porto Alegre e Nova Iguaçu.
¹ Pan-óptico é uma estrutura arquitetônica que facilita a vigilância de todos os indivíduos em seu interior, concebida pelo filósofo inglês Jeremy Bentham (1748–1832). O mecanismo de vigilância constante faria com que todos se comportassem conforme as regras estabelecidas. [N. de E.]
² Atitude política caracterizada pelo anticomunismo radical e pela perseguição política a ideias declaradas como comunistas. Seu nome vem do senador estadunidense Joseph Raymond McCarthy (1909-1957). [N. de E.]
