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A METAMORFOSE

Franz Kafka

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APRESENTAÇÃO

Cora Rónai

Coluna originalmente publicada no jornal O Globo em 19 de Junho de 2019.

 

Essa semana chegou aqui em casa um pacotinho pequeno. Lá dentro estava um livro vermelho, com uma figura negra e letras em branco na capa dura — mas, ainda antes de abri-lo por completo, reconheci o volume que, há uns dois meses, foi enviado pelo pessoal da Leonardo Da Vinci ao ministro Weintraub, da Educação, com um bom pedaço cortado.

“Antecipadamente, pedimos desculpas pelo corte de 25% no livro, mas a situação das livrarias brasileiras está difícil”, escreveram os livreiros na ocasião.

Adoro livrarias, adoro livreiros e adorei a ideia, ainda que tenha sofrido vendo a foto do livrinho cruelmente contingenciado. Fiz uma nota mental de que deveria ir atrás daquele Kafta¹ e, claro, esqueci, pois as minhas notas mentais não são de confiança.

Fiquei radiante ao recebê-lo. Veio com uma carta simpática dos editores, com um postal e um jornalzinho da cidade imaginária de Antofágica — que é, aliás, o nome da editora. Achei graça.

Uma editora recém-nascida que se pressupõe cidade sonha alto; mas uma editora recém-nascida que consegue produzir um primeiro lançamento tão satisfatório tem competência para materializar seus sonhos e convocar leitores para sonhar junto. 

Não digo isso só pela cara bonita, porque ela ajuda mas está longe de ser o mais importante; digo pelo conjunto todo, do design de Pedro Inoue à arte de Lourenço Mutarelli, passando pela tradução impecável de Petê Rissatti e pelos textos de Mutarelli, Rissatti e do professor Flávio Ricardo Vassoler, que buscam um público novo para um clássico que, em tese, dispensaria apresentações.

Abri o livrinho, e fui fisgada pela abertura, que mistura a primeira frase às ilustrações: “Quando Gregor Samsa, certa manhã, despertou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado em um inseto monstruoso.”

Só o fechei horas depois, quando terminei a leitura.

Li A metamorfose quando tinha uns 15 anos, e ao mesmo tempo me lembrava e não me lembrava dele. Lembrava como todos nós nos lembramos: Gregor Samsa está no nosso inconsciente coletivo, faz parte da civilização ocidental.

Mas não me lembrava mais de que obra extraordinária é essa, e de como é merecida a sua reputação. É surpreendente como este pequeno romance continua atual, e como consegue despertar tantos sentimentos diferentes. Todos nós nos sentimos Gregor Samsa em algum momento, em algum lugar: mal-adaptados, inconvenientes, incompreendidos, nossas melhores intenções interpretadas pelo avesso.

Leiam Kafka, releiam Kafka.

 

*CORA RÓNAI é jornalista, escritora e fotógrafa. Foi pioneira do jornalismo de tecnologia no Brasil, e é hoje colunista semanal do jornal O Globo.

¹ Em maio de 2019, o ministro anunciou um corte no orçamento das universidades federais e, no mesmo mês, se equivocou ao chamar o autor Kafka de Kafta.

Posfácio 01

A metamorfose

por Lourenço Mutarelli*

Tinha vinte e poucos anos quando meu amigo Jorge Abdala me emprestou A metamorfose. Eu já havia lido alguns clássicos. Amava Machado de Assis, Augusto dos Anjos, e a leitura de Crime e castigo, de Dostoiévski, me impressionou muito na juventude. Mas quando li Kafka pela primeira vez, mudou tudo. A metamorfose foi o maior impacto que a literatura já exercera em mim. Dostoiévski me trouxe o peso, a densidade e a complexidade psicológica da realidade. Kafka me trouxe algo ainda mais profundo. Algo que tocou o lado mais obscuro e metafísico em mim, e que fez vibrar os fios de meu mundo onírico. A metamorfose despertou uma força ancestral em meu ser. Algo maior do que eu. Desde então, esse passou a ser para mim o livro mais simbólico de todos. Havia uma identidade absoluta. Gregor Samsa representava meus sentimentos, principalmente na ocasião em que li a obra pela primeira vez, tão precisamente. Costumo dizer que na época eu tinha ciúme de que alguém lesse este livro. Ele era meu. Revelava-me, me expunha e desmascarava. Eu vivia e me sentia como Gregor. Há um belíssimo texto de Modesto Carone, intitulado “O parasita da família”, em que o renomado tradutor analisa uma questão muito singular desta obra: ao contrário de outros textos que abordam o tema da metamorfose, aqui ela se dá de forma mais perturbadora do que nos demais. Carone cita, por exemplo, os contos de fada e a Odisseia, ressaltando que, no caso de Gregor Samsa, essa transformação é irreversível.

Além do fato de Gregor ser visto pelos outros — e isso incluía sua própria família — como um parasita, uma criatura repulsiva, nojenta, desagradável e indesejável.

Eu sentia receber esse mesmo olhar dos que me rodeavam.

Eu era essa mesma decepção.

Foi uma grande alegria, tantos anos depois da primeira leitura, fazer parte desta edição, feita com tanto carinho por todos os envolvidos.

 

*LOURENÇO MUTARELLI é escritor, artista plástico e dramaturgo.

Posfácio 02

Às voltas com Franz

      por Petê Rissatti*

Pois somos como troncos de árvore na neve. Aparentemente jazem suavemente e, com um pequeno empurrão, seria possível afastá-los. Não, não é possível, pois estão presos com firmeza ao solo. Mas veja, até mesmo isso é apenas aparente. 

“As árvores”

Entre os grandes mestres da literatura moderna, Kafka sempre foi um nome de relevo. O tísico autor que escreveu a maior parte de sua obra conhecida em alemão; o judeu que, ao lidar com a religião, alternava ironia e tragicidade; o frustrado funcionário burocrático que apenas queria ganhar a vida escrevendo; o garoto que passou para a vida adulta enfrentando o fantasma gigante de um pai castrador. Essas são apenas algumas das imagens que refletiram os muitos Kafkas que existiram entre 1883 e 1924. Como todos nós, ele é múltiplo, complexo e vai além do estereótipo que lhe atribuem nos dias de hoje.

Kafka era, antes de tudo, um rebelde contido. Seu primeiro atrevimento foi se entregar com abnegação à escrita, mas sem deixar de lado o “dever” de ser útil imposto pela sociedade — tanto de sua época quanto da atual. Ter um emprego, sustentar uma família, casar e ter filhos, marcar na lista de afazeres da vida todas as caixinhas vazias. Mas a despeito do comedimento, no fundo ele era um rebelde, e nos deixou sem ter marcado várias delas. Como casar — com todas as formalidades, ao menos — e ter filhos, por exemplo. Morreu de tuberculose em um sanatório sem deixar descendência, mas não sem deixar um legado, ainda que a contragosto: sua obra literária, uma das mais inventivas de seu tempo, fascina leitores até hoje.

Conhecido não apenas por seus livros, mas também por virar de cabeça para baixo diversas ideias sobre o fazer literário, Kafka desafiou várias tradições da escrita de sua época com a tranquilidade de quem narra fatos inusitados ou impossíveis, o que viraria a sua marca registrada — bem como suas personagens aparentemente normais e pacatas que, de repente, acometidas por um elemento estranho e incontrolável, precisam lutar para se manter vivas ou sãs.

Quem vê a famosa fotografia de Kafka, semelhante a uma três por quatro, imagina-o baixo, muito magro e um ser tristonho, considerando o que escreveu durante a vida: textos melancólicos, repletos de um pessimismo voraz, mas sem arroubos nem pirotecnias desnecessários. O simples fato desencadeador dos eventos já causa transtorno suficiente às personagens, não há motivo para mais. Porém, Kafka media mais de 1,80 metro, era um nadador contumaz — de seu diário vem a famosa frase: “Hoje pela manhã a Alemanha declarou guerra à Rússia. À tarde, escola de natação” —, um homem de inteligência aguçada e excelente interlocutor. Não à toa Dora Diamant, a única mulher com quem viveu, era apaixonada por ele e permaneceu ao seu lado até o fim, mesmo com o risco que a tuberculose de seu amado lhe oferecia.

A inquietação moderna de Kafka salta aos olhos, uma insatisfação com a sociedade do jeito que ela é, com seus costumes e amarras, a negação de uma vida comum e confortável em troca de um universo muito mais humano. E Kafka escolhe expor essa intranquilidade perante o mundo em forma de crítica profunda, carregando nas tintas daquilo que normalmente já se mostra cruel: as relações de individualidade entre nós, a pressão para nos tornarmos seres encaixados em uma máquina, engrenagens obedientes e sem controle sobre o próprio destino, peças do jogo do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. E, dentre as obras do autor, seu grande sucesso em matéria de inquietação e perturbação é, sem dúvida, o título que você tem em mãos, caro leitor.

No início, uma possibilidade

A impossibilidade de não escrever, a impossibilidade de escrever em alemão, a impossibilidade de escrever de outro modo. Também se poderia acrescentar uma quarta impossibilidade, a impossibilidade de escrever.

Trecho de carta ao amigo Max Brod¹

O início de todo livro é fundamental para o seu sucesso, e, provavelmente, em A metamorfose, Kafka escreveu a primeira linha mais impactante da literatura contemporânea: “Quando Gregor Samsa, certa manhã, acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado em um inseto monstruoso”. Entre a palavra inicial e o ponto que conclui a frase, o leitor é lançado em um turbilhão que não vai se acalmar até o derradeiro ponto-final, após as três partes que compõem a história. Essa única sentença leva o leitor a imaginar todas as implicações de se acordar diferente, depois de consideráveis “sonhos intranquilos”. E com algumas impossibilidades nas mãos: levar uma vida como a de antes, ter as mesmas oportunidades, o mesmo cotidiano. Toda mudança é perturbadora, sempre causa espécie, mas a metamorfose de Gregor Samsa aniquila qualquer expectativa de uma vida normal.

E para quem traduz o texto, uma impossibilidade também se apresenta: a tripla negativa que há no idioma alemão, praticamente irreproduzível no português. Na língua de Goethe, em geral se nega com uma partícula, un-, que, aliada a substantivos e adjetivos, dá o sentido negativo. As três palavras-chave da primeira frase são “intranquilos” (unruhig), monstruoso (ungeheuer) e inseto (Ungeziefer). Há várias interpretações para essa tripla negativa, como as três partes do texto em que Gregor é renegado pela família, que trazem outros elementos ao imaginário popular. A possibilidade de se chegar a três “in”, nossa partícula de negação em português, exigiria um salto maior que a própria frase: utilizar uma palavra que tanto refletisse a enormidade do bicho em que Gregor se transforma como expressasse a feiura, a estranheza e a repulsa que o animal causa. Decidi, como outros tradutores da obra, manter uma única palavra, “monstruoso”, pois é a nossa maneira de englobar esses sentidos sem ter de destrinçar uma frase que deve ser enxuta para funcionar. Talvez fosse preciso um termo mais erudito para conseguir esse feito, porém as palavras que Kafka usa são simples e diretas. E o impacto seria diferente já na primeira frase.

Também as nuances do idioma alemão acabam, de certa forma, trazendo questões ao nosso trabalho, causando “sonhos intranquilos” a quem se aventura nessa intermediação. Um exemplo seriam os três gêneros do alemão: masculino, feminino e neutro. O professor Modesto Carone, em seu livro Lição de Kafka, aponta uma virada no texto que todo tradutor de A metamorfose precisa enfrentar. Em determinada altura, quando fica claro à família Samsa que não verá de novo Gregor como ele sempre foi, o protagonista deixa de ser chamado de “ele” (er) e passa a ser tratado de “isso” (es) pelo narrador, que representa a visão que o mundo tem do metamorfoseado Gregor; no entanto, o leitor sabe que, em seu íntimo, Gregor é a mesma pessoa, como se aprisionado naquele ser temido, semelhante ao príncipe transformado em Fera do conto de fadas francês, mas sem o poder e a ferocidade do nobre; o que lhe resta é aceitar as sobras da família, os restos de comida, de atenção, de afeto, de respeito. Gregor é reduzido à condição de bicho pelos demais, relegado aos cantos da casa, escondido das vistas das pessoas, retirado do convívio e, pela falta de voz e de significância, aos poucos também se animaliza. Mas a essência do ser humano ainda permanece nele, e por meio de suas emoções, ao final do texto, o personagem revela ao leitor que o homem ainda está ali. Como a língua portuguesa não dispõe desse recurso morfológico, a diferença não é clara, mas apenas residual, o que nos leva a optar pelo gênero masculino ou a adotar o pronome “isso”, ou ainda a usar expedientes como “o bicho” e “o animal” para ressignificar o humano que havia em Gregor.

Mas, traduzir é isso, negociar de forma incessante com sentidos múltiplos em dois idiomas, em duas culturas, duas épocas, duas vivências, dois públicos distintos. Espero que essa ponte o ajude a tocar os sentimentos de Kafka e Gregor. Ah, e preste atenção ao acordar depois de ler este livro: talvez você tenha sonhos intranquilos, e certamente não será a mesma pessoa de antes.

*PETÊ RISSATTI é tradutor, escritor, professor e pesquisador de literatura e tradução.

¹A tradução desse trecho é de Laura Teixeira Motta em O mundo prodigioso que tenho na cabeça, de Louis Begley, a partir da tradução do alemão ao inglês do livro de Franz Kafka Letter to friends, family and editors (New York: Schoken Books, 1977), realizada por Richard e Clara Winston. Os demais trechos de Kafka são traduções minhas diretamente do alemão.

Posfácio 03

As metamorfoses de Franz Kafka

    por Flávio Ricardo Vassoler*

Antes de caminharmos pela floresta negra do escritor judeu de origem tcheca Franz Kafka (1883-1924), o adjetivo kafkiano já nos ronda como um espectro. A atmosfera kafkiana pressupõe o medo de olhar para trás — e se uma sentinela estiver em meu encalço? —, o pavor de devassar um corredor escuro, estreito e repleto de portas de aço que se confundem com celas, e a subversão da lenda bíblica que faz o pequeno Davi derrotar o gigante Golias. Em Kafka, o colosso Golias, metamorfoseado como pai, juiz e sentinela, está sempre a um passo de abater Davi como um cão. Vale, aliás, frisar que, em Kafka, a noção de protagonismo das personagens se vê radicalmente emparedada pela onisciência, onipotência e onipresença de instâncias de poder, que irrompem nos locais mais inesperados: logo de manhã, já dentro do quarto de Josef K., no almoxarifado de seu trabalho ou mesmo sob uma reles escada.

Os leitores de A metamorfose (1915) deparam, desde o início da novela, com a transformação fabular do jovem caixeiro-viajante Gregor Samsa em um inseto repugnante, que sofrerá ainda mais com o jugo que a família lhe impõe. A animalização de seres humanos e a antropomorfização de animais também seriam utilizadas por Kafka em “A pequena fábula” (1920), breve narrativa que pode ser tida como uma verdadeira síntese do universo kafkiano:

“Ah”, disse o rato, “o mundo torna-se cada dia mais estreito. A princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual eu corro”. — “Você só precisa mudar de direção”, disse o gato e devorou-o.¹

Josef K., Gregor Samsa, o agrimensor K., personagem do romance O castelo (1926), e o próprio Kafka, pessoa/personagem de Carta ao pai (1919), podem ser entrevistos como metamorfoses do rato trêmulo e combalido de “A pequena fábula”. A propósito de possíveis projeções do próprio Kafka em relação às personagens de sua obra, vale notar que, além do sobrenome K., Samsa e Kafka despontam como sobrenomes análogos, já que, à esquerda e à direita das consoantes “m” e “f ” repetem-se as sequências parelhas “sa” e “ka”. Ademais, o beco que encurrala o rato entre a ratoeira e a goela do gato irrompe como a tensão kafkiana por excelência: a impotência do sujeito em resistir e, no limite, em sobreviver às investidas externas, que muito superam o poder de uma possível vontade.

Ora, se tivermos em mente a cisão cada vez mais pronunciada entre o capitalismo e a democracia liberal mundo afora, entreveremos a trágica atualidade de Franz Kafka, cuja obra foi sendo composta, nas duas primeiras décadas do século XX, em meio à Primeira Guerra Mundial e à eclosão de governos e ideias totalitárias em diferentes países. Nesse sentido, Kafka bem pode ser lido como um prenúncio agourento dos campos de concentração, que, à direita e à esquerda, logo se espraiariam como uma metástase, da Europa do Leste à Sibéria.

Ao lermos relatos de escritores que lograram sobreviver a campos de concentração nazistas, como É isto um homem?, de Primo Levi, e Noite, do judeu de origem romena Elie Wiesel, e a campos de trabalhos forçados soviéticos, como Contos de Kolimá e Arquipélago Gulag, escritos, respectivamente, pelos russos Varlam Chalámov e Alexander Soljenítsin, percebemos que o exílio interno, isto é, a fuga do sujeito para dentro do próprio imaginário, despontava como exígua possibilidade de escapatória diante das instâncias de poder às quais os corpos — ou, pior, as carcaças — dos prisioneiros pertenciam. Assim, entre a ratoeira e a goela do gato, só restava ao rato acossado a pequena fábula do imaginário.

Mas, quando falamos sobre a atualidade de Kafka, precisamos ponderar se a possibilidade do exílio interior ainda se apresenta como alternativa factível diante da ubiquidade das novíssimas instâncias de poder, as quais, dotadas de capacidade tecnológica inexistente à época de Kafka, já dispõem de meios não só para colonizar/doutrinar o imaginário, como faziam as indústrias de propaganda, mas também para (re)criar, para o sujeito, a própria realidade, a partir do entendimento e captura da maneira pela qual a consciência irrompe e opera.

Assim, se quisermos acompanhar as metamorfoses que aproximam Kafka de nossa época, precisamos ter em mente, como se fôssemos Gregor Samsa, Josef K., o agrimensor K. e o rato, outras possibilidades de leitura – e angústia.

***

Como artista, Kafka nos legou uma escritura que tende a mimetizar a cadência burocrática dos relatórios das mais uniformemente variadas repartições. Ainda assim, é preciso lembrar um relato de Max Brod, o melhor amigo do escritor, segundo o qual Kafka ria aos borbotões quando lia suas estórias para os amigos. Ora, como é possível rir em meio à claustrofobia de suas obras? Eis, então, uma possibilidade para interpretarmos as alegorias de Kafka sob um prisma dissonante, como os surrealistas o fizeram.

Em uma cena clássica do filme Um cão andaluz (1928), escrito e dirigido por Luis Buñuel e Salvador Dalí, contemporâneos de Kafka, uma nuvem transpassa a lua cheia enquanto uma navalha afiadíssima rasga o olho esquerdo de uma donzela, e, do globo ocular, é expelida uma gosma prateada como se a lua tivesse se tornado pastosa. Assim, munidos de seu ímpeto de associações radicalmente inusitadas, os surrealistas leem Kafka, para além da chave do poder, como um autor cujas alegorias expandem as irradiações expressivas da realidade.

Se Kafka ria ao ler suas estórias para os amigos, é possível imaginar que, para além do sadomasoquismo, o riso do artista entrevê comicidade, também presente na história, em uma realidade que expele sentinelas do almoxarifado de uma empresa ou de uma portinhola que se esgueira sob uma reles escada. Uma leitura social e política de Kafka interpretaria tal riso como uma tentativa de expurgar a radical impotência do indivíduo diante das estruturas de coerção, mas Buñuel e Dalí, munidos da navalha lunar, possibilitam entrever na metamorfose de Gregor Samsa um escaninho da surrealidade, que, de forma sub-reptícia, liga as traquinagens da lua ao globo ocular de uma donzela.

***

Por fim, parece-me importante salientar uma angústia demasiado humana que irrompe da obra de Kafka: o medo da liberdade. É bem verdade que, conforme já discutimos, o medo assume uma dimensão colossal que se vê umbilicalmente aguilhoada à dinâmica das estruturas de poder. Ainda assim, poderíamos entreouvir um certo discurso da servidão voluntária no ratinho de “A pequena fábula”, que, diante da imensidão primordial do mundo, se sente aliviado com o estreitamento das paredes à direita e à esquerda. Em A metamorfose, a transformação de Gregor Samsa em inseto é tomada como um dado prosaico da realidade — mais um mote para levarmos a sério a leitura surrealista —, assim como, em O processo, Josef K. mal interpela seus carrascos a respeito do fardo que lhe cai sobre os ombros. Tal aspecto fatalista, pode nos revelar outra dimensão da angústia kafkiana: o medo daqueles que, diante da complexidade e da miríade de (des)caminhos e escolhas, tendem a buscar, contra os próprios interesses e contra a própria liberdade, a guarida da ratoeira, da carapaça do inseto e do processo.

É como se, em Kafka, as personagens sempre buscassem alguém diante de quem se ajoelhar; é como se, ao lado das leituras políticas e surreais, Kafka nos sussurrasse que o medo da liberdade é parte fundamental do que somos. Eis, talvez, o mote de um dos mais contraditórios aforismos de Franz Kafka: “Há esperança, mas não para nós”.

*FLÁVIO RICARDO VASSOLER é escritor e professor; doutor em Literatura Comparada com pós-doutorado em Literatura Russa.

¹ Franz Kafka, “A pequena fábula”. In: Narrativas do espólio. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 37.

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