
DOM CASMURRO
Machado de Assis
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APRESENTAÇÃO
Camilla Dias

Meu primeiro contato com Machado de Assis foi no ensino médio, com o livro Memórias póstumas de Brás Cubas. Naquele momento eu não me considerava uma leitora sensível o suficiente para absorver os escritos de um autor tão aclamado – acho que isso pode ser traduzido como “medo dos clássicos”.
Mal sabia eu o quanto esse clássico conversa de igual para igual com o povo brasileiro. Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro em 1839, filho de uma lavadeira e de um pintor de paredes. Pobre, negro, com saúde frágil, epilético e gago. O que poderíamos esperar para seu futuro? Ninguém contava que ele seria um dos escritores mais famosos da história da literatura brasileira.
Foi só depois de muitos anos que me senti apta a ler e compreender os feitos literários desse escritor negro-brasileiro que, em função da estrutura racista e do processo de embranquecimento pelo qual passou a sociedade brasileira, teve sua origem negra encoberta por muitos, inclusive pela minha professora de língua portuguesa da escola.
Descobrir o Machado-negro me colocou num outro lugar como leitora, motivou meu interesse. Ao contrário do que muitos pensam, não temos representação na literatura apenas quando encontramos personagens com os mesmos fenótipos, mas também quando quem os constroem é preto como quem lê.
Proponho um exercício para você, leitor. Pensando em todas as adversidades que o escritor enfrentou em sua vida e tendo em mente a sociedade brasileira estruturalmente racista, discriminatória e preconceituosa, tente imaginar quantos Machados não temos por aí, produzindo textos potentes, com qualidade ímpar. Com certeza teríamos gratas surpresas se nos permitíssemos o contato com estes artistas.
A inteligência e a genialidade de Machado são inegáveis. O que me chama mais atenção no seu fazer literário é o olhar aprofundado para o psicológico nas construções dos personagens, além do humor ácido e pessimista que o torna único como escritor.
Dom Casmurro, publicado pela primeira vez em 1899, apresentará a você o personagem Bentinho, suas fabulações e ironias. Num texto cheio de idas e vindas, o escritor consegue desfazer qualquer certeza que tenhamos sobre fatos e acontecimentos. A narrativa em primeira pessoa nos permite observar o mundo apenas pelo olhar de Bentinho; é através dele que ficaremos a par do suposto triângulo amoroso com Capitu e Escobar.
Uma pergunta que costuma ressoar ao fim da leitura é: Capitu traiu Bentinho? Porém, há ainda outras perguntas e inquietações que esse livro desperta. Por exemplo, sugiro uma atenção maior ao desenvolvimento dos personagens Bentinho e Escobar, à amizade e ao afeto que nutrem um pelo outro.
Machado brinca com nossa imaginação e deixa o final da trama aberto para que nós decidamos (ou julguemos), a partir das pistas, provas e contraprovas contidas no texto, o melhor fechamento para a história dos três personagens. O resultado não é fácil e não há quem possa chegar a uma resposta categórica, sem deixar aquele restinho de dúvida.
Depois de ler Dom Casmurro e perceber se tratar de uma obra acessível e envolvente, tenho certeza de que todo receio em ler os clássicos livros de Machado de Assis cairá por terra. As belíssimas ilustrações de Paula Siebra ajudarão nesta empreitada e trarão uma imersão maior na narrativa. Boa leitura!
*CAMILLA DIAS é produtora de conteúdo independente no Instagram @camillaeseuslivros. Assistente social, mediadora de leitura e pós-graduada em Docência em Literatura e Humanidades.
Posfácio 01
Uma palavrinha da artista
por Paula Siebra*
Nunca chorei lendo um livro. Com Dom Casmurro, foi a primeira vez.
Era janeiro de 2020 quando recebi uma mensagem do Daniel Lameira, editor deste livro que a leitora tem em mãos. Ele me disse: “Achei seu número lá no seu site e queria te convidar para um projeto. Posso te ligar?”.
Assim chegou o convite que mudaria completamente os próximos seis meses da minha vida.
Num primeiro instante, senti muito medo de acompanhar – ilustrando Machado, ainda por cima! – um pintor como Portinari, cujas artes compuseram os outros livros da coleção. Simplesmente não acreditei que pudesse ter caído sobre o meu colo tamanha estrela cadente! Meu medo era tão grande, que no dia seguinte liguei para um amigo, e depois de trocarmos referências e processos usuais para um projeto desses (afinal, eu não sou ilustradora, sou pintora!), ele me disse: “Paula, calma. É só ilustrar com a mesma ironia com a qual Machado escreve…”.
Foi nesse momento em que percebi que não havia por que me desesperar. Eu teria ao meu lado o melhor professor que qualquer ilustrador pronto para iniciar uma longa caminhada através de um livro precisa: o próprio autor. E que autor!
Mas havia um outro medo do qual tive que me livrar na marra: o bico de pena. Quando Daniel e eu nos sentamos para um café e discutimos a direção artística do livro, pensamos em algo que fosse consoante com os volumes ilustrados por Candido. Em O alienista, ora usando o nanquim num pincel, ora num bico de pena, Portinari cria atmosferas de claro-escuro que embaralham a gente. Já nas Memórias póstumas de Brás Cubas, usa apenas a linha como elemento principal, e com ela vai imaginando o rosto dos personagens, lugares e objetos que permeiam a narrativa. Mas essa linha é uma linha aberta; os rostos nunca são demasiado descritos, nem os lugares nos são dados em todos os seus pormenores. Ora, é que certamente o pintor também se deixou afetar pelo texto de Machado: indireto, irônico, puramente sugestivo… oblíquo! E como poderia eu, usando um instrumento tão incisivo e afiado como uma caneta bico de pena, ser ambígua? Onde se encaixaria o caráter poético tão particular desse livro?
Em Dom Casmurro, assim como nos dos dois outros volumes de Machado lançados pela Antofágica, uma narrativa cheia de entremeios e interrupções do narrador se faz presente. Sendo assim tão cheia de detalhes que jogam luz nos arredores do acontecimento principal, faz-se necessária também uma ilustração que acompanhe esse caráter aberto da história. Não tem como ser direto quando se trata de Machado, e muito menos de Bentinho! Se o Bruxo do Cosme Velho nos conduz numa narrativa repleta de neblina, então é preciso também silenciar em algumas curvas desse caminho tortuoso e cada vez mais sombrio que envolve nossos personagens, para que o leitor não seja ceifado do maior prazer proporcionado pela literatura (e quiçá por todas as artes): a possibilidade de imaginar.
Essa história de negociar em que momentos eu daria vida a uma composição mais fechada, complexa e intrincada, em contraponto às demais ilustrações, mais leves e ornamentais, foi uma das partes mais bonitas do processo todo. O desafio era óbvio: dar vida a um desenho que voa, flutuando nas feições dos tantos personagens da Rua de Matacavalos e do Rio de Janeiro antigo; sugerindo seus traços, mais do que os impondo. Já a preocupação com a fidelidade aos elementos da época – os mais diversos objetos do uso cotidiano, o vestuário, a paisagem – aconteceu muito mais como uma invenção a partir das referências que popularmente conhecemos, na tentativa de situar a imagética da obra e brincar com suas possibilidades formais, do que como um registro exato e historiográfico de tudo que foi a sociedade do Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX.
É importante registrar também que, como a mulher que sou, foi natural ter entrado nas primeiras páginas já desconfiada de Bentinho – afinal, sabemos que os acessos de ciúme e a crueldade com que ele trata sua tão outrora amada Capitu são sintomas claros de uma situação realmente doentia do seu próprio psiquismo, normalizada pela estrutura social da época. Apesar de já se passar mais de um século, sabemos que não há nada de muito novo sob o sol… então, eu me perguntava: como retratar esse homem obsessivo que se faz presente na vida de tantas mulheres?
Talvez algumas de nós, como eu, estivessem acostumadas a imaginar um Bento Santiago extremamente teatral e decrépito. Pode ser que essa imagem seja ainda uma consequência do retrato feito por Capitu, lançada pela Globo lá em 2008. A direção artística da minissérie girava em torno de uma encenação teatral, então esse olhar sobre Bentinho cabia bem naquele contexto. Na contramão disso, durante o livro inteiro, me apeguei às referências que tirei da vida comum, e não seria diferente quando imaginei nosso protagonista-narrador.
Acredito que o homem obsessivo circula normalmente entre as demais pessoas, como qualquer outro; não usa cartola, nem mangas bufantes, nem necessariamente tem ares de um eremita ou de um maníaco. Sim, Bento é recluso e um tanto peculiar nos seus gostos eruditos e na sua casmurrice, como acusa seu apelido; mas ele deixa claro que tem amigos e até sugere ter tido outros relacionamentos amorosos. Chamo atenção para isso porque talvez exista uma imagem estereotipada desse “homem louco de ciúmes”, e quem sabe resida nas muitas subcategorias do “homem tóxico” uma armadilha desapercebida: de que esse homem doente pode ser “reconhecido” previamente, de alguma maneira. Porém a realidade é outra: os tantos Bentos deste mundo afora podem nem sequer ter demonstrado qualquer tipo de descontrole, como percebemos pelos frequentes casos de tentativas de feminicídio em que as vítimas sobreviventes ou suas famílias relatam que o parceiro nunca havia dado sinais de violência. E não é que Machado está tão atento a isso que, ao criar um personagem tão convincente e manipulador, acaba nos envolvendo em sua loucura e, por fim, nos engana também?
À medida que o livro foi entrando em mim, ia percebendo de perto não só a grandeza de Machado, mas também a grandeza desse romance em especial. A perspicácia com a qual o Bruxo joga as mais diversas ambiguidades que fazem ondular essas páginas é a grande responsável por não deixar que Dom Casmurro seja um mero testemunho de um homem descontrolado de ciúmes. Reduzi-lo a qualquer coisa é um erro. E é justamente essa a beleza dessa obra: a incerteza. Tão pecado quanto presumir que Capitu traiu Bentinho, é presumir que ela não o traiu, e acreditar que esse é o ponto de maior interesse da obra é matá-la por completo. Levar a sério esses fatos objetivos que dão a tônica do enredo é sufocar o que há de mais poético nessa obra: a simultaneidade dos acontecimentos. Na nossa imaginação, Escobar foi à casa de Bento para falar de negócios, ao mesmo tempo que foi para ver Capitu. Nunca saberemos – e, aqui, que prazer é não saber! Vou me valer do que diz o poeta inglês Roger Wolfe num de seus versos: “se o que queres é uma garantia / então compra um televisor”.
Mas afinal, o que existe então em Dom Casmurro que faz dele uma obra tão extraordinária? Seguem aqui alguns palpites, talvez muito embebidos pela minha sensibilidade de pintora, e por isso mesmo pertinentes.
Em todo o livro, somos envolvidos pela atmosfera sentimental que Bentinho vai construindo diante de nossos olhos: ele traz doces detalhes sobre sua casa, sua família, mas especialmente sobre sua mãe. É um romance escrito por um filho único; o mundo é todo dele. A pintura do papel de parede, as roupas dos seus parentes, sua rua… tudo lhe interessa, e é com um certo amor que descreve todos esses detalhes para nós. O livro parece projetar em nosso rosto a luz dourada das tardes da mais doce nostalgia. Nós nos transportamos facilmente para esse Rio de Janeiro do século XIX, cheio de rendas, velhos objetos de metal com seus brilhos mortos, suas ruas de ladrilhos e de poeira… toda essa paisagem favorece a paixão que nasce ali e, se nos deixarmos viver essas memórias, logo nosso coração fica amolecido.
Sem o menor esforço, ou pelo menos assim o parece, Machado nos leva aos chás da tarde de D. Glória, e nos sentimos como um passarinho que assiste a todos os encontros de Bento e Capitolina. O que não faltam são elementos às beiras da narrativa: os objetos ao redor, como louças, bordados, descrições minuciosas de um retrato. Estes detalhes maravilhosos foram grandes aliados no desenho de um grupo gráfico que serve como uma ampliação das possibilidades imaginativas colocadas por Bento, acompanhando o texto. Ao fazer esses pequenos desenhos, senti o que deve ser a alegria besta desses cachorros de cidade de interior, que vão correndo ao lado das motocicletas, tentando alcançá-las…
Mas apesar da minha inclinação natural a essa atmosfera impregnada ao livro, nem tudo foram flores e tardes à relva: sem dúvidas, a face de Capitu foi o objeto mais difícil de se trabalhar. Não é que faltem descrições do narrador, muito pelo contrário: o tempo todo, Capitolina vai sendo montada diante de nós, em sua aparência e ânimo. Seus cabelos negros, nariz reto, queixo largo… e morena. Por que morena, e não branca? É claro que Machado entendia, a partir de sua própria vivência, que uma menina morena ocupa um lugar social particular, muito mais vulnerável às desconfianças da elite e muito mais passível de receber alcunhas como as ditas por José Dias. Desenhar Capitu é difícil porque ela é um fantasma, fruto de uma rememoração de um velho, e habita este livro como uma aparição. Machado nos dá os ingredientes, mas cada um de nós carrega consigo uma Capitu no coração. Esta é a minha.
Que os desenhos deste livro tenham enfeitado de rendas, heras, e pontos-cruz a imaginação do leitor; e que estas palavras tenham podido enriquecer a experiência dos que se interessam pelos caminhos tortuosos da criação. A minha alegria máxima terá sido alcançada se, como eu, quem tiver este livro em mãos possa deixar-se surpreender pela única certeza que Dom Casmurro nos dá: de que tudo é incerto, tanto na vida, como nos livros. E essa é a nossa maior libertação.
Paula Siebra, outubro de 2020
*PAULA SIEBRA é pintora. Formada em Pintura na Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mantém seu ateliê atualmente em Fortaleza, sua terra natal.
Posfácio 02
O narrador em Dom Casmurro
por Geovani Martins*
Após finalizar mais uma leitura de Dom Casmurro, fecho o livro com uma certeza: o texto, publicado há mais de cento e vinte anos, permanece um dos mais modernos da literatura em língua portuguesa. Mais do que isso, com o passar do tempo, o livro parece tornar-se ainda mais relevante. Para mim, seria impossível escrever sobre o êxito deste romance através dos séculos sem abordar a figura do narrador.
Em Dom Casmurro, Machado constrói um narrador-personagem melindroso ao extremo, desequilibrado emocionalmente, cheio de manias, e ao mesmo tempo altamente sofisticado em recursos literários, repleto de devaneios românticos. Não à toa, Bento Santiago por muito tempo seduziu e manipulou a crítica brasileira, ganhando a simpatia de gerações de leitores, que sofriam com ele sua desilusão amorosa.
Foram precisos sessenta longos anos para que a desconfiança provocada pelo romance fosse deslocada de Capitu para o próprio narrador do livro. A ideia foi levantada em um ensaio publicado em 1960 por Helen Caldwell, com o título de O Otelo brasileiro de Machado de Assis. No texto, Caldwell propõe, de forma inédita, uma discussão sobre a confiabilidade do narrador em Dom Casmurro, com base em seus ataques de ciúme e falta de empatia. A partir de então, surgiram muitas outras leituras que colocam em dúvida a possibilidade de confiar na palavra de Bento Santiago, levando o debate para um lugar muito mais complexo do que apenas o “traiu ou não traiu”.
Os personagens mais inesquecíveis são os contraditórios. E, no caso de Dom Casmurro, a contradição é apresentada de forma bastante peculiar. Santiago, homem letrado e conhecedor de grandes obras da literatura universal, sabe muito bem a importância do recurso da incongruência para a construção de um personagem e usa esse conhecimento para manipular o leitor a todo instante. Com a desculpa de contar toda sua experiência, sem omitir nem mesmo as passagens e pensamentos mais sórdidos, Bento negocia o tempo inteiro com seu interlocutor. Ao apresentar o lado mais sombrio de si, busca receber em troca a confiança de quem lê. Afinal, se teve coragem de contar que chegou a desejar a morte da própria mãe para que pudesse se casar com Capitu, que interesse ele poderia ter em faltar com verdade? Os esforços para demonstrar ao público as próprias contradições fazem da narrativa uma armadilha. Durante todo o romance, Bento parece sussurrar ao ouvido do leitor: pode confiar em mim, amigo. Que motivos teria eu para mentir?
No ensaio A poesia envenenada de Dom Casmurro, o crítico Roberto Schwarz sugere que, para chegar a um entendimento completo do livro-armadilha, são necessárias no mínimo três leituras. A primeira, romanesca, na qual se acompanha a formação e decomposição de um amor; a segunda, de ânimo patriarcal e policial, ligada aos prenúncios e evidências de um adultério tido como certeza; e a terceira, desconfiada, com os olhos voltados para o próprio Bento e sua ânsia de convencer a si próprio e ao leitor da culpa de sua esposa. É muito interessante a sugestão de Schwarz porque, de fato, quanto mais penso no romance, maior fica a sensação de que não sei quase nada sobre Capitu, o que atrapalha qualquer julgamento que se pretenda justo. Isso porque, quando Bento fala sobre ela, descobrimos muito mais sobre ele próprio do que sobre sua ex-esposa.
Dom Casmurro pode ser facilmente dividido em duas partes. A primeira, grosso modo, trata da luta adolescente pelo casamento. A segunda, da ruína dessa união. A partir dessa divisão, é importante notar como o olhar do leitor se transforma na transição entre uma parte e outra. Tudo aquilo que Bento contou sobre Capitu na primeira fase, e que chegou ao leitor em forma de elogio, se transforma em defeito sob a perspectiva da segunda fase. No começo da narrativa, a capacidade de controlar e manipular as emoções, de arquitetar planos com base nas estruturas sociais do entorno, dava à Capitu traços de maturidade e personalidade. Já na segunda parte, o narrador faz com que esses traços pareçam, ao leitor, mera manipulação, fruto do desejo de uma escalada social meticulosamente estruturada.
Não podemos esquecer que Bento é advogado por formação. Olhando por esta perspectiva, o livro inteiro pode ser percebido como uma grande acusação, friamente calculada por um charmoso promotor que, na ausência de provas, tenta fazer valer sua palavra através da simpatia que busca despertar no júri ao longo de todo o seu depoimento.
Um retrato do Brasil do século XIX
Pela forma como trabalha a dimensão psicológica de seus personagens, Machado de Assis é considerado hoje um dos mais universais entre os autores brasileiros. Ao contrário do que possa parecer, isso não quer dizer que suas histórias poderiam se passar em qualquer lugar do mundo. Os personagens machadianos são todos muito bem fundamentados na época e no contexto social em que o autor vivia. Em Dom Casmurro não seria diferente.
Através da família Santiago, Machado pinta um impressionante quadro da realidade social do Brasil no século XIX, o último país em todo o mundo a abolir a escravidão. Seus personagens são frutos dessa sociedade e refletem suas filosofias e engrenagens.
No século XIX, a população brasileira se dividia em três partes: os proprietários, os escravizados e os homens livres (brancos pobres e os alforriados). Com o trabalho escravo operando como base da produção nacional, sobravam poucos empregos para os homens livres, o que os levava, muitas vezes, a depender das famílias proprietárias. Surgiam os agregados. A dependência, no entanto, não se limitava a esse grupo; funcionava como um fio que ligava todos os setores da sociedade. Os proprietários dependiam da escravidão para manter suas fortunas, assim como dependiam dos agregados para marcar seu lugar social. Os homens livres dependiam dos proprietários para conseguir qualquer emprego ou para se encostar enquanto agregados.
A família Santiago é proprietária, fato que os coloca bem no centro desse quadro social. Além da mão de obra escrava, contam com os “favores” dos agregados, como José Dias ou mesmo Prima Justina e também com a reverência e total atenção das famílias pobres ao redor, como no caso da família de Capitu.
Todos os personagens do romance, assim como suas motivações, nascem do contexto social da época. E o mais importante de tudo: a maneira como Bento reage aos acontecimentos de sua vida, e o jeito como ele percebe e narra esses episódios, revela ao leitor atento que tal personagem não poderia ter nascido em outro ambiente.
Dessa forma, olhamos para os agregados, para os brancos pobres, para os escravizados, os comerciantes, sempre com a visão de quem foi nascido e criado numa família proprietária, e que desde cedo se acostumou a mandar e ser atendido. Quando observamos o Brasil letrado da época em que Dom Casmurro foi publicado, entendemos perfeitamente por que demorou tanto tempo para que desconfiassem do narrador; grande parte do público leitor era o próprio Bento Santiago, ou pelo menos gostaria de ser.
A partir da vida de Bento, o romance traça toda a formação desse quadro social. O próprio relacionamento com Capitu é diretamente atravessado por questões de classe. Na infância, além de lutar contra a promessa de sua mãe para que fosse padre, Bento entra em um combate invisível contra o fato de sua pretendente pertencer a uma classe distinta da sua. É necessário notar que a solução para nenhum desses problemas parte do protagonista. A dependência dos esforços alheios é um dos traços decisivos para compreender o personagem.
No caso do seminário, em momento algum Bento consegue confrontar Dona Glória, sua mãe. Diante disso, apela para que as pessoas ao redor o façam por ele. Capitu toma algumas atitudes, José Dias também. Por fim, a solução vem de uma ideia de Escobar: pagar pelos estudos de um órfão para que este vire padre e, assim, permitir que se cumpra a promessa de Dona Glória. A própria execução da ideia está totalmente atrelada ao fato de ser uma família proprietária: com posses para arcar com os custos, além do renome para ser bem interpretada pelo clero.
Em relação a Capitu, os problemas que poderiam ter surgido por conta do relacionamento foram resolvidos pela menina antes mesmo que Bento abandonasse o seminário. Foi Capitu quem preencheu a lacuna deixada na casa pelo pretendente. Em pouco tempo, ela fez-se necessária à futura sogra, a quem encantava de diversas formas; fosse pela devoção religiosa, pelos carinhos, pelo humor ou pelos cuidados com a casa e com as pessoas. Seus esforços não passaram despercebidos, tanto José Dias como prima Justina comentavam com desprezo o que julgavam ser uma clara tentativa de escalada social através do casamento. Tudo isso, desde os esforços de Capitu até a percepção dos agregados, é narrado por Bento, como se ele próprio fosse um bilhete premiado. O fato é que, mesmo tendo a intenção de se casar com Capitu desde a adolescência, ele não precisou fazer absolutamente nada para que isso acontecesse.
Graças às artimanhas de Capitu, o casal passou ileso por essa primeira batalha social. A segunda batalha, no entanto, seria muito mais dura. Após o casamento, Bento sai da condição de herdeiro para se tornar proprietário. O confronto provocado pelo abismo entre classes deixa de ser contra os outros e passa a ser contra si próprio. Na primeira vez em que Bento não pode contar com a ajuda de terceiros para lidar com uma questão importante, ele falha miseravelmente na sua resolução.
Entre muitas passagens em que, de maneira sutil, Machado pinta esse quadro social, quero destacar duas que me chamam particular atenção. A primeira é relacionada ao ciúme que Bento tem de Escobar. Desde os casamentos de ambos – Bento com Capitu e Escobar com Sancha – acompanhamos relatos da relação maravilhosa de que desfrutam os quatro. Escobar era então um pequeno comerciante que vivia com a esposa no Andaraí, subúrbio da cidade. Não me parece nada aleatório que a desconfiança de Bento face aos gestos do amigo e da esposa só tenham tido início no momento em que Escobar ascende socialmente. Já um comerciante respeitado, ele se muda para o Flamengo, tornando-se praticamente vizinho de Bento e Capitu. É como se, apenas após a meteórica ascensão do amigo, Santiago pudesse ser capaz de julgá-lo como um rival, de vê-lo no mesmo patamar.
A segunda passagem é quase um detalhe no meio do livro, mas que com certeza não foi parar ali à toa. No capítulo LXX, após sair da missa na qual fora pedir perdão por desejar a morte da mãe, Bento vai à casa de Sancha, onde sabe que vai encontrar Capitu. Como é natural em sua vida de proprietário, ele é muito bem tratado por todos, especialmente por Gurgel, pai de Sancha, que insiste que o rapaz almoce em sua casa. Após recusar, com a desculpa de que não avisara Dona Glória, Bento ouve a seguinte resposta: “Manda-se lá um preto dizer que o senhor fica almoçando, e irá mais tarde.” No capítulo seguinte, acompanhamos a primeira visita de Escobar à família Santiago. Após ouvir seu amigo declinar o convite para jantar em sua casa, Bento reproduz, com ares de homem maduro, exatamente a mesma frase que ouviu do pai de Sancha. Em pequenos gestos, sempre constantes, o pensamento escravocrata ia sendo introjetado através das gerações.
Bento Santiago é filho desse sistema. Não por acaso relembra com tanta nostalgia os tempos do Império, as cantigas dos escravizados de ganho, a sociedade de sua adolescência. Bento chegou a tentar reproduzir exatamente a casa onde viveu a infância. No Brasil pós-abolição, Dom Casmurro é um homem do passado.
Machado de Assis ao contrário
“O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.” Depois de pensar muito sobre a trajetória de Bento Santiago, comecei a perceber que a lacuna à qual ele se refere não consiste em algo que foi perdido, mas sim que nem chegou a construir. Filho único em uma família rica, Bento foi protegido durante toda a vida. Por conta da promessa da mãe, estudou em casa – o que fez grande diferença em sua história; ele não aprendeu a socializar. Como não foi à escola, onde seria obrigado a enfrentar conflitos com crianças de sua classe social, Bento cresceu com a ideia de que a sociedade existe para servi-lo. Não aprendeu a sentir dor, nem a ouvir “não”.
A incapacidade emocional do personagem é escancarada em todo o livro. Diante da doença da mãe, da possibilidade de a morte chegar à sua casa, ele pensa no casamento, em como seria boa a chegada dessa morte em função de seu propósito. Em outro momento, no enterro de seu melhor amigo Escobar, Bento sente um avassalador ataque de ciúmes pela maneira como sua esposa olha para o defunto. Ambas as situações representam a mesma incapacidade de lidar com fortes emoções. Bento foge para se proteger. Depois mergulha na culpa, de onde costuma emergir como vítima.
Quando olho para a biografia de Machado de Assis, em comparação à vida de Bento (e tantos outros de seus personagens), tenho a impressão de encarar um espelho invertido. É como se o autor criasse a partir de seu oposto.
Homem negro, neto de escravizados, o próprio Machado viveu como agregado de uma chácara em sua infância. Aos quinze anos publicou pela primeira vez no jornal e não parou nunca mais. Escreveu romances, contos, crônicas, peças de teatro, críticas, além das traduções e de uma vasta correspondência. Alcançou o ápice de sua carreira literária aos quarenta anos, com a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, romance que revolucionou a literatura brasileira. Isso para não falar de sua longa carreira como burocrata ou do casamento estável com Carolina.
Quando penso no lugar social de onde Machado surgiu e onde conseguiu chegar, naturalmente imagino o quanto de inteligência emocional foi necessário para conquistar esses espaços, até então sempre negados a pessoas como ele. Por essa perspectiva, a ironia, ferramenta literária companheira do escritor, se apresenta também como arma de sobrevivência.
Não foram poucas as vezes em que ouvi dizer que Machado ignorava em seus livros as questões mais urgentes do Brasil em que viveu. Quanto mais conheço sua história e sua obra, mais discordo de afirmações semelhantes. Machado narrou com maestria as tragédias brasileiras. O que parece confundir certas análises é o fato de ter escolhido contar estas histórias a partir dos antagonistas.
Só alguém com a biografia de Machado, com seu olhar deslocado e por isso extremamente crítico a esta sociedade, poderia criar personagens como Bento Santiago. A maneira tragicômica como Machado cria e apresenta a vida de seu protagonista revela um olhar que veio da margem, alguém que foi, como cravou muito bem Roberto Schwarz no título de um de seus livros mais conhecidos, um mestre na periferia do capitalismo.
*GEOVANI MARTINS é autor do livro de contos O sol na cabeça, finalista do 61º prêmio Jabuti, publicado em dez países e com os direitos de adaptação vendidos para o cinema. É também colunista no Segundo Caderno do jornal O Globo.
Posfácio 03
Capitu, exílio e poesia
por Rogério Fernandes dos Santos*
Neste texto, vamos comentar algumas interpretações dedicadas a Dom Casmurro que se formaram ao longo de décadas de análise e leitura do romance. Não se trata de revirar a imensa biblioteca que se ergueu em torno de Bento Santiago e Capitolina, mas sim de fazer um passeio pelo romance e pelas suas sutilezas, acrescentando não a visão de pesquisador, mas principalmente a de leitor desta obra extraordinária. É também um convite para que você some suas reflexões à biblioteca imaginária de interpretações literárias.
Se você ainda não leu o romance, aguardo a sua leitura para seguirmos adiante. Se acabou de ler, vamos em frente, aproveitemos que a história ainda está fresca na memória. Se já leu há muitos anos ou há poucos meses, adolescente, jovem, maduro ou madura, vamos em frente. Cada época apresenta o seu Machado de Assis. Ele se renova com o nosso amadurecimento e com as ansiedades de cada tempo. Será, portanto, uma viagem pessoal a uma narrativa que sobrevive às diferentes leituras e traz à superfície do campo cultural brasileiro questões que estão longe de se esgotar.
Um dos momentos de renovação da leitura de Dom Casmurro ocorreu em 1969. Nesse ano, o professor e ensaísta Silviano Santiago fez uma importante observação sobre a obra de Machado. “Já é tempo de se começar a compreender a obra de Machado de Assis como um todo coerentemente organizado, percebendo que à medida que seus textos se sucedem cronologicamente certas estruturas primárias e primeiras se desarticulam e se rearticulam sob a forma de estruturas diferentes, mais complexas e sofisticadas.”¹ Santiago trata especificamente dos romances de Machado de Assis, sugerindo que a série de nove romances escritos pelo autor fluminense entre 1872 e 1908 é palco de temas estruturalmente elaborados em sua sucessão cronológica. O ensaísta não trata dos contos, poemas e peças teatrais, embora seja possível sugerir que o mesmo ocorra em todos os gêneros aos quais Machado se dedicou.
O primeiro romance, Ressurreição, publicado em 1872, é exemplo dessas reorganizações temáticas. Na trama, Félix não consegue lidar com a flecha do ciúme e da dúvida, renunciando ao amor da jovem viúva Lívia. O casamento e tudo o que o envolve, em uma sociedade brutalmente patriarcal, dita as ações do rapaz. “O problema do ciúme surgiu no universo machadiano […] da concepção que têm os personagens machadianos do que seja o amor e o casamento”². Segundo o crítico, a prosa de ficção machadiana concebe o amor como parte da instituição do casamento, com todas as suas prerrogativas materiais, propriedades, títulos e convenções. Um dos efeitos dessa equação em um contexto notadamente patriarcal é o ciúme e a constante vigília masculina advinda desse sentimento. O modo como Machado reelabora esse tema ao longo de sua obra é um dos pontos centrais dos estudos machadianos. Disso resulta outra revisão importante feita por Silviano Santiago acerca de Dom Casmurro e que deve ser anotada. Este não é um romance, a exemplo de Madame Bovary e Primo Basílio, que busca fazer o estudo psicológico do adultério feminino. Não se trata de absolver ou condenar Capitu – uma disputa de leituras e interpretações apaixonadas que tomou conta da crítica machadiana por mais de meio século. Se estudo há, é o estudo sobre o ciúme³ e o modo como ele mobiliza e se adere a estruturas históricas e sociais para justificar sua narrativa e sedimentar sua porosa obsessão.
Aqui é necessário abrir um parêntese e reconhecer que a leitura empreendida por Helen Caldwell em O Otelo brasileiro de Machado de Assis, de 1960, é responsável por colocar em dúvida o relato de Dom Casmurro. Caldwell parte de um minucioso estudo sobre Otelo e o modo como a leitura da tragédia de William Shakespeare é utilizada pelo narrador como argumento para suas suspeitas. Trata-se de um estudo pioneiro que adverte o leitor brasileiro, imerso na estrutura patriarcal e escravista, de que a única voz que se manifesta no romance é a de Bento Santiago, afundado em mágoas e disposto a provar para si e para o leitor que o seu ocaso se origina na deslealdade de Capitu, a qual, por sua vez, não possui voz no romance. Não é exagero afirmar que o estudo de Caldwell foi um dos alicerces para a necessária revisão do estatuto do narrador nos romances de Machado. Uma abordagem muito influente e que rendeu comentários irônicos, como o do crítico português Abel Barros Baptista, que, na melhor tradição da ironia machadiana, chamou a desconfiança em relação aos narradores de “paradigma do pé atrás”⁴.
Retomando Santiago, saliento que compreender a obra de Machado como um todo coeso não autoriza o erro de irmos aos primeiros romances para justificar o brilho de Memórias póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro e demais escritos da chamada “segunda fase” do autor. O que se propõe é entender a resposta dada por Machado às suas obsessões temáticas de acordo com o horizonte de expectativas e o campo cultural em que cada obra se insere.
Aproveito para abrir uma pequena frente de diálogo com as “estruturas primárias e primeiras” da obra de Machado: o livro como recurso retórico, uma espécie de elemento narrativo de uma trama metaficcional. Há, por toda a obra romanesca machadiana, livros, autores e personagens ficcionais da literatura ocidental que são reapresentados em contextos sociais e históricos distintos a cada romance.
Em um primeiro exemplo, vejamos como Otelo é referenciado em diferentes narrativas do escritor. Em Helena, romance publicado na forma de capítulos em 1876, Machado estava interessado em dialogar com o grande público leitor de folhetins, romances seriados de ação e entrecho amoroso, muito próximos do que são as nossas telenovelas⁵. Na trama, Helena é filha da amante do conselheiro Vale, rico proprietário que morre repentinamente e a reconhece como filha em seu testamento. Obrigada a conviver com sua nova família, ela furtivamente visita seu pai biológico, Salvador, em uma pequena cabana nos arredores da chácara da família Vale. Convidado a se explicar, Salvador relata seu relacionamento com Ângela, mãe de Helena. Diz ele:
Poucos dias antes, a bordo, um engenheiro inglês que vinha do Rio Grande para esta Corte, emprestara-me um volume truncado de Shakespeare. Pouco me restava do pouco inglês que aprendi; fui soletrando como pude, e uma frase que ali achei fez-me estremecer, na ocasião, como uma profecia; recordei-a depois, quando Ângela me escreveu. “Ela enganou seu pai, diz Brabantio a Otelo, há de enganar-te a ti também”. Era justo; pelo menos, era explicável.⁶
Aqui há uma dupla suspeita: a da traição de Ângela e da veracidade no relato de Salvador. O narrador é digno de crédito? Quais interesses estão ocultos em suas ações e falas? A dúvida avança até em relação à leitura e à interpretação que esses narradores fazem de Otelo. Do volume “truncado” de Shakespeare, Salvador reteve apenas aquilo que ilustrava suas suspeitas. Ao mesmo tempo em que equipara a sua experiência à de Otelo, o personagem-leitor extrai da obra apenas aquilo que convém a suas expectativas e situações, fazendo da literatura um instrumento retórico.
Essa passagem ilustra a rearticulação dos temas machadianos. Se em Helena o estudo do ciúme apresenta-se como exercício melodramático, em Dom Casmurro ele assume proporções mais amplas, sintomáticas da crise do paternalismo, como estudo das instituições que se esgarçam na mesma medida da violência de suas práticas.
Essa peça de Shakespeare trata de ciúmes e morte. O general mouro Otelo, instigado por Iago, estrangula a inocente Desdêmona. Assim, atributos como ciúme e morte são recortados do contexto da tragédia e recondicionados na narrativa de Salvador, em Helena, e de Bento Santiago, em Dom Casmurro. Ocorre que esses narradores-atores, sujeitos das próprias narrativas, sobrepõem suas vozes à de Otelo, inserindo na trama um comentário que nos esclarece a natureza da ficção romanesca. Estabelece-se um diálogo entre diferentes registros sociais e artísticos, formando uma estrutura de significados que demanda interpretação e distanciamento crítico do leitor. Mas como manter o distanciamento diante de paixões como ciúme e morte, afetos que nos falam de perto?
Por conta dessas paixões contidas na primeira leitura é que o narrador de Dom Casmurro entrega de antemão a chave interpretativa:
[…] não me pude furtar à observação de que um lenço bastou a acender os ciúmes de Otelo e compor a mais sublime tragédia deste mundo. […] O último ato mostrou-me que não eu, mas Capitu devia morrer. Ouvi as súplicas de Desdêmona, as suas palavras amorosas e puras, e a fúria do mouro, e a morte que este lhe deu entre aplausos frenéticos do público.
— E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo; — que faria o público, se ela deveras fosse culpada, tão culpada como Capitu? E que morte lhe daria o mouro? Um travesseiro não bastaria; era preciso sangue e fogo […] (p. 387-389)
Se Desdêmona, que era inocente, foi morta, “o que faria o público, se ela fosse tão culpada quanto Capitu? […] Sangue e fogo”. Ao fazer de Otelo uma extensão de sua subjetividade, o narrador faz do intertexto um despiste do que deveria estar em primeiro plano: a obsessão de Bento Santiago em nos fazer crer que Capitu é culpada.
É importante destacar a radicalização do processo narrativo de Dom Casmurro. Quem escreve o romance não é o Bentinho, jovem apaixonado por sua fascinante vizinha, com quem viria a se casar e habitar a casa da infância e que veria, com o tempo, suas idealizações românticas ruírem. O autor ficcional é Dom Casmurro, Bento Santiago, ex-seminarista, homem maduro e solitário, que habita um simulacro da casa de sua infância e lança um olhar para o passado, buscando compreender o seu ocaso. Dom Casmurro é fio de sua própria meada e Bentinho é uma projeção de si, personagem de ficção de um tratado de persuasão de si e do leitor.
Essa liberdade interpretativa da obra de Shakespeare só é possível graças à narrativa em primeira pessoa, que permite essa série de relatos pessoais ilustrada com recortes da história literária. A memória resgatada é trôpega, imprecisa. Portanto, é necessário preencher as lacunas com as aproximações entre vida e literatura, exercício que estamos sempre fazendo, parte essencial da nossa ligação com o real. No entanto, tal aproximação não é uma atividade apressada de autor amador, mas ressalta a bela arquitetura da forma construída por Bento Santiago e acentua a retórica do convencimento. O feliz e apaixonado Bentinho, uma ficção da memória, é fruto da casmurrice do autor.
Podemos mesmo pensar que o paralelismo entre o personagem Bentinho e o autor Dom Casmurro é como o paralelismo entre experiência subjetiva (a memória resgatada da infância feliz) e crítica literária (a reconstrução da memória por meio da experiência da leitura). Há, penso, dois efeitos que podemos extrair dessa constatação. Primeiro, ela desautoriza o leitor casual, porque a erudição do narrador também é uma forma de validar e reforçar o discurso. Segundo, mobiliza o leitor interessado a reconstruir o que foi lido a partir dos seus conhecimentos a respeito de literatura, filosofia, religião etc. em sintonia com a sua visão de mundo e experiência subjetiva. Em ambos os casos, o narrador estará sempre um passo adiante, porque o fato narrado por ele cria a necessidade de interpretação por parte do leitor, o que não ocorre de imediato. A compreensão da narrativa como um exercício de crítica literária autoficcionalizada, e não como um resgate fiel da memória, se dá na releitura. Essa releitura se mobiliza indefinidamente porque o narrador, imediatamente após a citação e comentário literário, já repõe o material comentado em novas chaves de interpretação ao longo da narrativa. Vejamos outro exemplo, nesse pequeno trecho que trata do episódio do dândi do cavalo baio:
[…] Relê Alencar: “Porque um estudante (dizia um dos seus personagens de teatro de 1858) não pode estar sem estas duas cousas, um cavalo e uma namorada”. Relê Álvares de Azevedo. Uma das suas poesias é destinada a contar (1851) que residia em Catumbi, e, para ver a namorada no Catete, alugara um cavalo por três mil-réis…Três mil-réis! Tudo se perde na noite dos tempos. (p. 234)
Embora Machado cite Alencar, a cena remete, de maneira enviesada, a outro autor. Como se sabe, um dos modelos para a literatura de Alencar é o escritor francês Honoré de Balzac (1799–1850). Em um dos seus mais representativos romances, O pai Goriot (1834), Rastignac, um jovem estudante arrivista que busca ascender socialmente na Paris de 1819, convive a todo o momento com a falta de dinheiro e do aparelhamento material para alcançar o seu intento. Possuir um cavalo e uma carruagem é um dos requisitos básicos não só para a circulação na cidade, mas para o livre trânsito nas grandes casas da aristocracia parisiense. Uma passagem é significativa: Rastignac é convidado a visitar uma senhora da alta sociedade; por ter pouco dinheiro, ele segue a pé, cuidando para não sujar a roupa e assim manter a aparência aristocrática; como andava distraído com a ansiedade do encontro, acabou por enlamear-se:
“Se eu fosse rico” pensou, ao trocar uma moeda de cem soldos que levava para um caso de necessidade “iria de carro e assim poderia pensar à vontade.”
Chegou, finalmente, à rua Helder e perguntou pela Condessa de Restaud. Com a raiva fria dum homem que tem a certeza de que um dia triunfará, recebeu o olhar de desprezo dos criados que o viram atravessar o pátio a pé sem terem ouvido o ruído duma carruagem. E esse olhar o feriu mais profundamente porque, ao entrar no pátio, percebera a sua inferioridade ao ver um belo cavalo atrelado a um desses carros que revelam uma existência dissipadora e atestam o hábito de todas as delícias parisienses.⁷
Recordemos a passagem em Dom Casmurro. O narrador afirma que no tempo de sua mocidade não se podia estar sem cavalo e namorada, ao passo que, em oposição, o narrador de O pai Goriot sugere uma outra vinculação, menos ingênua e potencialmente esclarecedora; possuir um cavalo é um meio de manter as aparências e galgar posições na aristocracia parisiense. Lembremos que Bentinho é representante de uma aristocracia à brasileira, de proprietários, e Capitu, como o narrador sugere ao longo do romance, galga posições na sociedade com seu casamento. Note-se como, no romance de Balzac, a ascensão social é um meio objetivo por detrás da dissimulação, ao passo que Machado, através de um procedimento de ocultação das fontes – ao citar Balzac via Alencar – trata da ascensão social, mas dissimulando a fonte literária que trata desse assunto. Para sugerir a dissimulação de Capitu, o narrador dissimula o intertexto, fazendo da história literária um objeto de análise do processo de deslocamento social.
Está aí, como matéria ficcional, o procedimento de ficção crítica, recurso para completar a elipse que se faz presente entre o texto e o leitor.
Melancolia e exílio
Se as alusões a modelos e fontes literárias é um procedimento de caracterização do personagem e uma forma de interação entre o leitor e o texto, é a representação das assimetrias sociais por meio de muros, espaços de circulação e sociabilidade que dão a esses personagens a dimensão da especificidade histórica nacional. Em A mão e a luva (1874), segundo romance de Machado, Guiomar é uma jovem órfã de pai “não sei de que repartição do Estado”, criada pela mãe “enérgica e resoluta”. A jovem desde cedo mostrou-se capaz de apreender a sua realidade com inteligência e sensibilidade.
Na idade de dez anos, tinha Guiomar uns desmaios de espírito, uns dias de concentração e mudez, uma seriedade, a princípio intermitente e rara, depois frequente e prolongada, que desdiziam da meninice e faziam crer à mãe que eram prenúncios de que Deus a chamava para si. […] A primeira vez que esta gravidade da menina lhe tornou mais patente foi uma tarde, em que ela estivera a brincar no quintal da casa. O muro do fundo tinha uma larga fenda, por onde se via parte da chácara pertencente a uma casa da vizinhança.⁸
O muro que divide classes sociais e visões de mundo distintas é outro exemplo que gostaria de mencionar. A melancolia de Guiomar é interpretada por sua mãe como prenúncio de morte, enquanto o narrador em terceira pessoa relembra o primeiro “desmaio de espírito” da jovem. O muro que divide sua casa é a representação física da delimitação social tão comum no Brasil. Cercas, muros, grades que protegem e regem o convívio, filtrando de acordo com a necessidade a passagem das classes menos afortunadas.⁹ A fenda, como uma janela para outros horizontes, evidencia para Guiomar que seus pressentimentos são reais. A pequena passagem atua como gatilho do ensimesmamento, do silêncio, da solidão e da consciência de que há barreiras para a realização de projetos cuja demanda a própria Guiomar, ainda criança, desconhece. O que é a melancolia na modernidade senão essa forma de sensibilidade conflituosa com os espaços de circulação impostos? O peso e o contrapeso das existências colocadas em paralelo?
Alguns anos depois, em Dom Casmurro, a melancolia ganha contornos de intervenção concreta. Capitu atua no estado de coisas de modo a burlar certos constrangimentos sociais de classe embutidos na relação entre vizinhos – “a dificuldade estava na casa ao pé, a gente do Pádua”, anuncia entre sussurros José Dias. Ela atua apesar dos constrangimentos, apropriando-se do símbolo da divisão e inscrevendo na materialidade do espaço sua intervenção afetiva. Se Guiomar encontra uma pequena fissura social, Capitu age para que o muro venha abaixo.
— Capitu.
— Mamãe!
— Deixa de estar esburacando o muro; vem cá.
[…] Capitu estava ao pé do muro fronteiro, voltada para ele riscan- do com um prego. […] Nisto olhei para o muro, o lugar em que ela estivesse riscando, escrevendo ou esburacando […] Vi uns riscos abertos […] Então quis vê-los de perto, e dei um passo. Capitu agarrou-me, mas, […] correu adiante e apagou o escrito. […] Dei um pulo, e antes que ela raspasse o muro, li estes dous nomes, abertos ao prego, e assim dispostos:
BENTO
CAPITOLINA (p. 53-56)
A cena é polifônica. Enquanto o narrador nos situa quanto ao espaço da ação e descreve Capitu, “As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor; não cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula” (p. 53-54), vemos a jovem progressivamente agindo sobre o muro. O objeto “muro”, estrutura de defesa territorial e contenção de pobres, negros e demais “náufragos da existência”, sofre intervenção da jovem, que segundo o narrador é pobre, de mãos rudes, cheira a sabão comum, mas é sem mácula. Note-se que a descrição integra a máxima dedicada aos pobres com permissão para transitar do outro lado do muro: são limpos.
É importante salientar como o contexto histórico e social está inserido na metáfora dos muros de Guiomar e Capitu. Em A mão e a luva, o modo de vida advindo do paternalismo e da lógica escravocrata está em segundo plano, sufocado pelo esboço do casamento burguês como meio de ascensão social e as suspeitas, ajustes e constrangimentos que o sujeito deve fazer e sofrer para atender às suas demandas. Qualquer tipo de superação desse estado de coisas está longe de se concretizar no horizonte ficcional de A mão e a luva.
Quando da publicação de Dom Casmurro, em 1899, o país havia derrubado alguns muros do atraso sem, no entanto, agir contra a estrutura que os sustentava. A abolição havia ocorrido em 1888, sem integrar os negros na sociedade, relegando-os à margem do sistema social e econômico. A proclamação da República de 1889 não resultou em políticas públicas e democráticas de inserção da população pobre no mercado de trabalho ou de combate às desigualdades. O Brasil continuou arcaico e agrário. A guerra de Canudos é exemplo importante desse movimento de construção do Brasil moderno e ansioso por ingressar na Belle Époque mundial da virada do século XIX sobre os ossos dos miseráveis.
Capitu compreende essa dinâmica. O “cálculo” de que lhe acusa o narrador-casmurro na verdade é uma condição essencial de trânsito e sobrevivência no paternalismo. Vejamos mais uma cena.
[…] Nunca a vi tão irritada como então; parecia disposta a dizer tudo a todos. Cerrava os dentes, abanava a cabeça… […] Capitu refletia. A reflexão não era cousa rara nela, e conheciam-se as ocasiões pelo apertado dos olhos. Pediu-me algumas circunstâncias mais, as próprias palavras de uns e de outros, e o tom delas. […] Tínhamos chegado à janela; um preto, que, desde algum tempo, vinha apregoando cocadas, parou em frente e perguntou:
— Sinhazinha, qué cocada hoje?
— Não, respondeu Capitu.
— Cocadinha tá boa.
— Vá-se embora, replicou ela sem rispidez.
[…] não quis saber de doce, e gostava muito de doce. (p. 69-72)
Capitu toma para si o mundo e o interpreta, colhe informações, pesa consequências, analisa fatos e toma decisões. Uma das conclusões do narrador é de que a vida é uma ópera, em que cada qual na roda do amor e da vida cumpre um papel — “não só pela verossimilhança, que é muita vez, toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem a definição” (p. 43). Na concepção de mundo de Bento Santiago, os papéis sociais estão determinados para todos que o cercam. Inclusive ele, que busca substituir o pai no comando da casa e na regência da família e agregados. Capitu, no entanto, é o acorde dissonante que destoa das categorizações impostas pela verossimilhança do narrador. De “a vida é uma ópera” para “a vida é um teatro”, outra simetria constante proposta por narradores machadianos, é um salto. Franco Moretti, ao tratar do sentido moderno da tragédia de Shakespeare, explica que:
A ideia de que o mundo é um teatro onde os homens simplesmente desempenham um papel só tem significado verdadeiro no contexto de uma “sociedade hierárquica feudal”, cuja característica fundamental […] consiste no fato de que “o trabalho produtivo e regulador da sociedade é dividido oficialmente entre grupos, faixas, classes ou pessoas”[…]¹⁰
Se pensarmos nos papéis já previamente fixados na narrativa, veremos que a sociedade brasileira proposta por Dom Casmurro é essencialmente jurídica, católica, masculina, escravista e unifocal, expressando apenas uma visão de mundo, a de Bento Santiago, que por sua vez é a extensão da elite brasileira. O ponto essencial para que a argumentação do narrador seja validada é que novamente o leitor é convocado a aceitar ou não as ações da narrativa, aderindo à verossimilhança de Bento Santiago como uma verdade. “O indivíduo existe, portanto, somente enquanto é um ator num papel social”¹¹.
Prova disso é a continuação da cena, em que ouvimos o canto do vendedor de cocadas. A entoada parece anunciar pelas ruas, tal um gesto lúdico e carnavalesco, que nem todos terão acesso às suas narrativas, verossimilhanças e verdades. “Chora, menina, chora, / Chora, porque não tem / Vintém”. O vendedor de cocadas sobrevive e atua entre a poesia (seu canto) e a violência (a privação da liberdade). O fruto de seu trabalho não lhe pertence, o doce que produz não lhe adoça os sentidos. O gesto alienado que lhe é imposto é interrompido pelo canto que desperta Capitu, “usava repeti-la nos nossos jogos da puerícia, rindo saltando, trocando os papéis comigo”. A letra da entoada atua como comentário irônico da situação social de Capitu, ao mesmo tempo em que o canto sofre da violência epistêmica de tornar-se parte da exploração de seu trabalho, em que mesmo sua subjetividade é coisa, mercadoria. Há uma via de mão dupla, própria das contradições da modernidade. O canto-poesia é ao mesmo tempo exercício de subjetividade e performance explorada.
— Se eu fosse rica, você fugia, metia-se no paquete e ia para a Europa.
[…] Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já ideias atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática faziam hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos saltinhos. (p. 72-73)
A leitura do mundo empreendida por Capitu e sua resolução de alcançar gradativamente seu objetivo, autonomia em meio ao patriarcalismo, sugere o terreno sensível que a jovem percorre. Afinal, interesse individual pode representar a quebra do “pacto” social entre os diversos atores. Para que o paternalismo funcione, deve-se acreditar nos papéis a se desempenhar, engolindo a indignação. O amor é masculino e burguês, como explica Silviano Santiago, porque significa casar, comprar título de propriedade.¹² Não está em jogo nesta matemática o amor fora da instituição casamento ou o trânsito por outra forma de realização pessoal que não seja coordenada pelo homem da casa. Daí a dor de Bento Santiago ao dar-se conta de que Capitu ousa sentir e pensar de acordo com as próprias reflexões e interpretações do mundo, para além do que está orquestrado na narrativa paranoica dele.
E uma vez transposto o muro? Qual o destino dos personagens subalternos em ambiente claustrofóbico de suspeita e afetos entrecortados? O salto social implica certo desterro, solidão e constante vigília.
Os espaços físicos da propriedade obedecem às próprias leis. No grande espaço da chácara do Andaraí, local onde se passa a maior parte da ação de Helena, a personagem-título é vítima do assédio da família que a recebe e faz uso de subterfúgios e de sua inteligência para visitar o pai biológico e transitar no delimitado espaço patriarcal. Ao final, tomada pelo constrangimento, deixa-se morrer. Lívia, personagem de Ressurreição, frustrada e vencida pelo ciúme de Félix, se autoexila em sua casa ao final do romance, uma imposição romântica para a sua expiação.
Toda essa morte e exílio deriva da concepção do amor enquanto propriedade, cuja maior expressão é o ciúme. Corpos e sujeitos reduzidos a títulos de posse.
Capitu enfrentou o muro físico que a separava da casa de Bentinho e o transpôs, sugerindo, mas não resolvendo, mudanças na lógica apequenada da família patriarcal. No final, desterrada do próprio país e local de cultura, é esquecida pelo narrador, que reconstrói a casa/muro de sua infância.
[…] fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga rua de Matacavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu. (p. 17)
[…]
Pegamos em nós e fomos para a Europa, não passear, nem ver nada, novo nem velho; paramos na Suíça. Uma professora do Rio Grande, que foi conosco, ficou de companhia a Capitu, ensinando a língua materna a Ezequiel, que aprenderia o resto nas escolas do país. Assim regulada a vida, tornei ao Brasil. (p. 400)
O tempo, para os desterrados, ora se congela, ora se torna combustível para as desilusões. Todos são leitores, alguns poucos são autores. Aqueles conscientes de que a existência é como um romance fragmentado cujo sentido se perde diante do desejo do outro, ou da suspeita, ou do interesse, impõem sua narrativa aos demais, que são excluídos do jogo. Quando se busca derrubar o muro das assimetrias sociais, o resultado é o degredo, a morte, o exílio.
É bem, e o resto?
O título deste texto inclui poesia. Qual poesia? Anoto uma frase de Dom Casmurro que sempre me incomodou: “Não houve lepra, mas há febres por todas essas terras humanas, sejam velhas ou novas” (p. 413). Como, nós leitores, podemos naturalizar a morte de um filho, mesmo ilegítimo e ficcional? Acaso aderíssemos ao relato, considerando a verossimilhança proposta pelo narrador, o que justificaria a morte por lepra em um livro que em grande parte celebra o amor juvenil? Isso seria o suficiente para desconfiarmos de que não se trata de mera casmurrice e sim de um acerto de contas cruel e ardido. “Os ciúmes condensam uma problemática social ampla, historicamente específica, e funcionam como convulsões da sociedade patriarcal em crise”, aponta Roberto Schwarz.¹³ O fato de que um sentimento tão íntimo tenha forças tão devastadoras a ponto de aderir a formas de organização social e sintetizar todo um país é um exemplo do poder da linguagem poética de Machado de Assis. Poesia é a singularização da linguagem e expressão de um discurso que não pode ser enunciado de outro modo. Creio que Capitu indica que viver à margem, entre muros, implica adotar técnicas de resistência e nunca perder de vista o fato de que muitas vezes se é exilado no próprio país. Capitu é resistência. E resistência é poesia.
*ROGÉRIO FERNANDES DOS SANTOS é professor de teoria literária e literaturas de língua portuguesa na Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão (UEMASUL) e doutor em Letras pela USP com tese sobre o romance machadiano.
¹. SANTIAGO, Silviano. “Retórica da verossimilhança”. In: Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 27.
². Idem, p. 31.
³. Nesse sentido, o ciúme machadiano, uma relação de posse e poder nutrida pela patologia patriarcal, distancia-se da definição dada pela psicanálise. Para Melanie Klein, “Deve-se traçar uma distinção entre inveja, ciúme e voracidade. A inveja é o sentimento irado de que outra pessoa possui e desfruta de algo desejável – sendo o impulso invejoso tirá-lo dela ou espoliá-lo. Além disso, a inveja implica na relação do indivíduo apenas com uma só pessoa e remonta à mais primitiva relação exclusiva com a mãe. O ciúme se baseia na inveja, mas envolve uma relação com, pelo menos, duas pessoas; diz respeito principalmente ao amor que o indivíduo sente como lhe sendo devido e que lhe foi tirado ou se acha em perigo de sê-lo, por seu rival. Na concepção popular de ciúme, um homem ou uma mulher se sente despojado da pessoa amada por outrem.” (KLEIN, Melanie. Inveja e gratidão: um estudo das fontes inconscientes. Rio de Janeiro: Imago, 1984, p. 31.)
⁴. O trabalho de Abel Barros Baptista representa saudável oxigenação no debate em torno da obra de Machado de Assis. Indico dois livros do autor: A formação do nome: duas interrogações sobre Machado de Assis e Autobibliografias: a solicitação do livro na ficção de Machado de Assis, ambos publicados pela Editora da Unicamp em 2003.
⁵. Sobre as relações entre Helena e o romance folhetinesco e melodramático, indico o meu texto de dissertação de mestrado defendido em 2009 na FFLCH/USP, O reflexo de Helena: modelos literários e nacionalidade em Helena (1876), de Machado de Assis.
⁶. ASSIS, Machado de. Helena. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/MEC, 1977, p. 211.
⁷. BALZAC, Honoré de. “O pai Goriot”. Trad. Gomes da Silveira In: A comédia humana. Introduções, notas e orientação de Paulo Rónai. Vol. IV. Porto Alegre: Globo, 1949, p. 54.
⁸. ASSIS, Machado. A mão e a luva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/MEC, 1977, p. 82.
⁹. Penso que a melancolia de Guiomar pode ser compreendida como um sintoma originado do mal-estar no capitalismo à brasileira, cerceador de subjetividades e movido a assimetrias sociais, tal como é formulado pelo psicanalista e professor Christian Dunker. No romance de Machado de Assis, as delimitações de espaço materializadas por muros, cercas e espaços sociais (a casa de orates em O alienista, a casa da infância de Bentinho, o morro do Castelo onde são feitas as predições em Esaú e Jacó etc.) configuram-se para o leitor como experiência das assimetrias e subjetividades das diversas camadas sociais brasileiras ficcionalizadas pelo autor. “O muro é uma estrutura de defesa, uma forma de determinação do espaço como território. A defesa (Abwehr) é um conceito psicanalítico que gira em torno das diferentes maneiras como indeterminação, gerada pelo desejo, pela angústia, pelo trauma e pela pulsação, pode ser concernida em estruturas de determinação.” DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 59.
¹⁰. MORETTI, Franco. “A forma trágica como desconsagração da soberania”. In: Signos e estilos da modernidade: ensaio sobre a sociologia das formas literárias. Trad. Maria Beatriz Medina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 72-73.
¹¹. Idem, ibidem.
¹². SANTIAGO, Silviano. “Retórica da verossimilhança”. In: Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 31.
¹³. SCHWARZ, Roberto. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 11.
Posfácio 04
O silêncio de Capitu
por Maria Ribeiro*
Li Dom Casmurro pela primeira vez na escola, aos catorze anos. O arrebatamento, no entanto, só veio no meu segundo encontro com o livro, aos dezessete. Três anos, às vezes, são uma vida inteira — principalmente naquela fase da existência em que alguns meses podem agir como uma década, tamanha a velocidade da troca das “bonecas russas”.
Ali, com a meninice chegando ao fim, eu já era outra, e talvez estivesse mais próxima do amor… do amor, e, portanto, do desamor. O fato é que, sob esta nova pele, a perda — o mais correto seria dizer “o roubo” — da espontaneidade de Capitu em função do cumprimento do “manual de instruções” do casamento me bateu com gravidade e espanto. Se, na mocidade, Bento admirava justamente a coragem da amada em agir e declarar seus pensamentos — coragem que ele, a propósito, não tinha —, na idade adulta esse mesmo comportamento passa a ameaçá-lo. O incômodo, evidente na forma como nos retrata a personalidade de Capitu, diz muito de uma dinâmica triste e ainda muito comum entre casais de hoje. Capitu gostava de se exibir, Capitu gostava de mostrar os braços, “Capitu era mais mulher do que eu era homem”. Essa última observação, em particular, dita nessas palavras pelo narrador — pra nós e pra si — logo no começo do romance, quando sua vizinha ainda usava tranças e vestido de chita, diz muito da personalidade do nosso herói/anti-herói. Bento Santiago não era feito de si, mas de todos aqueles que teimavam em ocupá-lo — e que ele permitia. Há outra passagem do livro igualmente reveladora a esse respeito: “Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo”.
Quando interpretei Capitu no teatro, vinte e um anos atrás, me impressionava a cada apresentação a brutalidade da mudança pela qual Bento passava quando dominado pelo ciúme. E como eram dois atores a encarná-lo, enquanto eu seguia fazendo Capitu, da adolescência à idade adulta, nunca consegui encontrar um único ponto que ligasse o Bento da rua de Matacavalos ao Casmurro do Engenho Novo. Sim, porque mesmo que tenha acontecido a suposta traição — e se não uso aspas aqui é mais por tentativa de dialogar com a obra do que por qualquer outra coisa — nada justificaria os atos que se seguiram a ela.
“Capitu era mais mulher do que eu era homem.” Talvez essa frase resuma com perfeição a tragédia do Engenho Novo e a mulher que dispensa tudo que veio depois do verbo “ser”. Capitu era. E “era” desde muito cedo, ao contrário de Bento, cujo olhar inseguro oscilava invariavelmente de acordo com o entorno. Suas visões de mundo eram quase sempre emprestadas, ou de José Dias, ou de sua mãe, ou da própria Capitu. Seria padre, não fosse Capitolina. Não a chamaria oblíqua e dissimulada, não fosse José Dias.
“Ser”, no final do século XIX, não era exatamente confortável para as mulheres. Mas Capitu era “amiga de si”, para de novo usar palavras de Bento, já transfigurado em Casmurro, e há uma tonelada de julgamento atrás desse comentário aparentemente inofensivo. Não havia lugar de fala, muito menos de narrativa, e o feminismo começava de forma tímida na Europa. Machado, por sua vez, não parecia corroborar a visão de seu protagonista — talvez por também ele sofrer preconceitos relativos às suas origem e cor — e dedicou sua pena à criação de inúmeras personagens femininas fortes e à frente de seu tempo. Quando terminei a faculdade de jornalismo, fiz meu projeto experimental sobre Iaiá Garcia, protagonista do último romance da fase romântica de Machado que, assim como Capitu — ao menos antes de ser calada pelo ciúme do marido — também agia de acordo com um manual muito próprio, sui generis, sem nunca tentar adaptar-se aos rígidos padrões de comportamento impostos às mulheres daquele tempo.
Sou especialmente afeita a romances que trazem, junto de suas histórias e personagens, um certo panorama histórico em que se passa a ação. Dom Casmurro não foge à regra e nos apresenta um rico perfil da mulher carioca na segunda metade do século XIX. As estruturas familiares e religiosas apontavam-lhe a submissão, e, muitas vezes, a renúncia. A ela, cabia a criação dos filhos e a administração das tarefas domésticas. E o silêncio. O prazer sexual era um direito dos homens, que, mesmo assim, só podiam experimentá-lo com prostitutas ou amantes. À rígida moral cristã, vieram somar-se as máximas da filosofia positivista que tanto influenciaram a sociedade brasileira daquele período. À mulher, destinava-se o casamento, e, por vezes, o convento. Pouco havia mudado desde os tempos coloniais.
Este é um texto parcial, caro leitor. Sou uma leitora comum revisitando este livro após muitos anos e muitas outras leituras. Mas minha relação com Capitu vem de longe, e, em 2020, infelizmente, ainda enxergo pontos em comum nos casamentos atuais e naqueles do final do século XIX. A suposta “traição” — não consigo mais fugir das aspas — da protagonista vem precedida de um certo domínio de sua trajetória, de uma existência em voz alta, de um conforto por pertencer a si. Capitu era um prenúncio da mulher moderna, que não só fazia escolhas, mas também refletia sobre elas.
“Há cousas que se não dizem”, diz Bento a Capitu já no terço final do livro. Ao que ela responde “Que se não dizem só metade”. Machado consegue captar com maestria um tipo de silêncio que serve tão bem à sua representação de Bentinho, e Dom Casmurro segue eternamente relevante e urgente, a despeito de ser a grande obra que é.
*MARIA RIBEIRO é atriz, escritora e documentarista. Fez filmes como Tropa de elite e Como nossos pais, peças como Capitu e Pós-F e lançou três livros: Tudo que eu sempre quis dizer, mas só consegui escrevendo, Trinta e oito e meio e Crônicas para ler em qualquer lugar, este último com Gregório Duvivier e Xico Sá.
