Davi Boaventura*, o tradutor da edição da Antofágica de O Mágico de Oz, contou um pouco mais sobre o processo de trazer essa grande obra da literatura para o português. Confira!
Traduzir não é um trabalho exatamente fácil, com todas suas escolhas, impossibilidades e dilemas morais. Mas traduzir um livro como O Mágico de Oz deixa a coisa muito, muito mais interessante. Não é só um livro, e é uma ingenuidade achar que se trata de apenas um livro. Com todas as adaptações cinematográficas, incluindo os curtas feitos ainda na época do cinema mudo e que ninguém mais se lembra, passando pelo teatro, pela televisão, pelas lendas e pelos espetáculos musicais, sem falar nas paródias, cópias e homenagens, e pensando ainda em toda a influência pop de Dorothy & seus amigos (a ponto de transitarem por estapafúrdias teorias da internet e pelo lado escuro da lua), o pequeno livro que L. Frank Baum publicou em 1900 para “as crianças de hoje” virou uma referência incontornável ― e claro que essa posição monumental vai, de alguma forma, influenciar o modo como um tradutor aborda a construção do texto, querendo, ao mesmo tempo, respeitar a obra original e criar uma identidade única, que justifique essa nova publicação.
É um movimento ambivalente, para falar a verdade.
Se por um lado, a leveza do texto faz com que o ato de traduzir consiga ser extraordinariamente divertido, a quantidade de referências e aproximações serve muito como um limite dúbio: às vezes é abismo, às vezes é porto seguro. Os nomes dos personagens, por exemplo. Bruxa Má ou Bruxa Malvada? Homem de Lata ou Lenhador de Lata? Winkies é um termo traduzível ou não? A adequação da linguagem também entra nessa conta, talvez até com mais importância. Estamos mesmo trabalhando com um livro infantil? Ou hoje, diante de todo o peso histórico, Oz não faz mais parte do mundo das crianças e virou um fato cultural para todas as idades? Aquele termo ali faz sentido neste livro? É muito abstrato? Muito adulto? Muito bobo? Qual tom devemos adotar?
Para mim, esse livro funciona como um lugar afetivo, um ponto de encontro. É para crianças. Mas também é um espaço para as pessoas mais velhas, seja para elas entrarem em contato com suas crianças, as internas e as de carne e osso, seja para se divertirem sem restrições de idade, seja para renovarem suas interpretações a partir dos olhos do mundo adulto. Muitas vezes, na dúvida para escolher um termo ou outro, me peguei imaginando uma cena na qual um pai ou uma mãe explica para seu filho o significado daquela palavra. Ou então pensava na pessoa que depois de ter lido o livro na escola, provavelmente em uma adaptação toda picotada e reduzida, pega o texto completo pela primeira vez e termina se vendo surpreendida. Essas imagens foram se acumulando até eu encontrar um tom que considero bastante fluido e acessível, mas não infantilizado ― no sentido de ser uma tradução cuja proposta tenta respeitar as “crianças de hoje”, os participantes dessa sociedade envolta em um mundo hiperconectado e saturado de informações.
Claro, não é um trabalho solitário. Além da presença de vários nomes nos bastidores da Antofágica, preciso citar aqui os nomes de Bárbara Prince e de Renato Augusto Ritto, que trabalharam na edição e na preparação do texto, em um diálogo que se estendeu por uma boa dezena de e-mails, trocando palavras, ajustando frases, retraduzindo certas passagens, adaptando o que era intraduzível. Foi um processo que, sou obrigado a dizer, ultrapassou o aspecto meramente literário, porque conversa também com a própria relação emocional do tradutor com o texto: qual tipo de controle quero ter aqui? Se sou eu que assino a tradução, devo aceitar essa sugestão, mesmo não concordando cem por cento com ela? Posso confiar? Aceito que estou errado?
Algumas escolhas foram mais questionadas do que outras, obviamente. Mas, por incrível que pareça, a tradução mais trabalhosa de todas envolveu uma palavra de apenas três letras: “cap”. Quem conhece o inglês contemporâneo, sabe que essa é uma palavra quase sempre traduzida como “boné”. Mas faz sentido termos um boné no maravilhoso mundo de Oz? Pesquisando em outras traduções disponíveis para o português, aparecem opções para todos os gostos: capuz, touca, gorro e por aí vai. Uma edição específica arriscou até um “barrete”, o que, convenhamos, soa um tanto quanto desproporcional. Até nos decidirmos por “gorro”, por se aproximar um pouco mais das ilustrações originais, foram longas horas de dúvidas (e aquela sensação de “não é possível que uma palavra de três letras vai ser esse transtorno todo!”).
No fim, salvaram-se todos.
E não estamos mais no Kansas, Dorothy.
Agora é hora de mais uma vez atravessarmos a estrada de tijolos amarelos.
*Davi Boaventura é escritor, fotógrafo e tradutor. Já publicou Talvez não tenha criança no céu, Mônica vai jantar, livro finalista dos prêmios São Paulo, AGES e Minuano, e o conto digital 17 de Abril. O Mágico de Oz é sua sétima tradução publicada.