Por Nathan Fernandes*
Quando Franz Kafka morreu de tuberculose, aos 40 anos, em 1924, uma carta foi encontrada em seus pertences. Na missiva, direcionada ao melhor amigo e também escritor, Max Brod, havia uma solicitação: “Querido Max, meu último pedido: tudo o que eu escrevi na forma de diários, manuscritos, cartas (minha e de outros), esboços e assim por diante, é para ser queimado, não lido.”
Talvez porque fosse uma das raras pessoas que acreditavam no potencial de Kafka, um conflito se instalou no coração de Brod. Mas ele não durou muito tempo. Dois meses depois, Brod assinou um acordo para publicar os livros desconhecidos (e inacabados) do amigo. Assim, veio à luz O processo — uma das obras mais celebradas do autor, depois de A metamorfose, a história do caixeiro-viajante que acorda metamorfoseado em um inseto monstruoso, de 1915. Em sua trilha, seguiram O castelo, de 1926, e O desaparecido ou Amerika, de 1927.

A explicação para a falta de confiança em publicar os materiais e queimar quase 90% de seu trabalho ainda em vida pode estar em outra de suas obras-primas póstumas, Carta ao Pai, de 1952 — que anos mais tarde causaria grande impacto em outro escritor de peso: Mario Vargas Llosa. “Eu me dava muito mal com meu pai, de quem tinha um pânico, e me senti totalmente identificado com esse texto desde as primeiras linhas, sobretudo quando Kafka acusa seu progenitor de tê-lo tornado inseguro, desconfiado de todos, de si mesmo e da sua própria vocação”, escreveu Llosa, ao El País. “Recordo com um calafrio aquela frase em que Kafka explica sua insegurança a ponto, diz, de não confiar em mais ninguém e mais nada, exceto o pedacinho de terra que seus pés pisam.”
Se tivesse prestado mais atenção às suas próprias palavras, Kafka não confiaria em Brod. No entanto, nem Llosa, nem o resto do Universo teriam sido impactados por suas obras. Além do reconhecimento, algo que nenhum dos amigos poderia prever era o processo que se desenrolaria a partir disso.
Quando morreu, em 1968, Brod deixou todo o seu “legado de família”, incluindo os arquivos de Kafka, à sua secretária Esther Hoffe, com quem acredita-se que tivesse um relacionamento. A não ser por algumas partes — como o original de O processo que foi arrematado em um leilão por 2 milhões de dólares, em 1988 — , os documentos permaneceram guardados em caixas no apartamento de Hoffe, em Tel Aviv, até sua morte em 2007, aos 101 anos. A herança foi passada então para as filhas septuagenárias, Ruth e Eva. E aí a coisa começou a ficar kafkiana de verdade.

As herdeiras alegaram que os documentos não precisavam ser catalogados e poderiam ser vendidos em um pacote único, por peso. O Estado de Israel, por meio da Biblioteca Nacional de Israel (BNI), resolveu brigar pelos arquivos, alegando que, acima de tudo, Kafka era um escritor judeu. E como as obras foram escritas em alemão, os alemães também entraram na briga através do Arquivo Literário de Marbach, formando um estranho ringue com três lutadores.
A questão é que, apesar de realmente ser judeu, Kafka nunca visitou Israel e sequer chegou a escrever a palavra “judaísmo” em seus escritos. Além disso, nascido em Praga, hoje capital da República Tcheca, o único fato que vinculava o escritor à Alemanha era o fato de ter tido sua família morta durante o Holocausto. Em vida, Kafka resistiu tanto ao sionismo quanto a identidade alemã. A casa de Eva tampouco poderia ser considerado um bom lar para os manuscritos, uma vez que, como disse à Folha de S. Paulo o arquivista da Biblioteca Nacional israelense Stefan Litt, “o apartamento [em que ela morava] tinha uns 20 ou mais gatos e baratas correndo entre nossas pernas. Demoramos cinco horas para esvaziarmos tudo. Levamos para a biblioteca quase 60 caixas”.
Em uma decisão de 2016, a BNI, que prometeu disponibilizar as obras ao público, venceu por nocaute. Mas se acredita que apenas 2% do material guardado seja composto por obras de Kafka. Para tristeza dos fãs, os especialistas acham difícil que alguma obra-prima original ainda esteja lá esperando para ser publicada.
Seja como for, a confusão com tons ficcionais parece ter colaborado para que um dos desejos de Kafka se transformasse em realidade. “Eu não sou nada além de literatura, não poderia, nem desejaria ser outra coisa”, escreveu ele na carta em que pedia a mão de Felice Bauer em casamento ao seu pai.
Kafka na Terra de Ooo
Não à toa, a relação de Kafka com Brod, que despertou um dos maiores imbróglios literários do século XX, encontra reflexos em diversas amizades da cultura pop. A série de animação pós-apocalíptica Hora da aventura parece ser a mais nonsense delas. No desenho, Finn, o humano, e Jake, um cachorro amarelo e ultraflexível, enfrentam vilões e salvam reinos no cenário colorido e onírico da Terra de Ooo, ao mesmo tempo em que precisam lidar com as particularidades de uma amizade interespécie.

Em uma cena do episódio “Problemas na Terra do Caroço”, da primeira temporada, esse reflexo fica evidente, quando Jake é mordido sem querer pela Princesa Caroço e corre o risco de virar um caroço sem memória de sua vida pregressa. Na viagem de busca por uma cura, ele faz um apelo:
— Finn, se você não me salvar dos caroços, se eu me transformar, se eu ficar todo encaroçado que nem elas [as princesas], eu quero que você…
— Não vai chegar a esse ponto, mas, se rolar, eu vou te enterrar debaixo da árvore mais linda na sombra.
— Opa! Opa! Opa! Eu ia dizer que, se eu ficar todo encaroçado, eu quero que você me aceite encaroçado. O que você pensou que eu ia falar?

No fim [spoiler alert!], a cura chega e nenhuma medida extrema é necessária. Mas, ao longo do episódio de dez minutos, Finn vê cada vez mais distante a possibilidade de aceitar Jake como um caroço, à medida que sua personalidade muda da amizade fraterna para a indiferença tóxica. A questão é: caso a história não tivesse um final feliz, o humano acataria o pedido do amigo de aceitá-lo como um caroço grosseiro que sequer preza pela sua amizade?
“Confiar envolve abrir-se para a possibilidade de traição, levando a uma forma profunda de dano”, escreveu a filósofa Martha Nussbaum, no livro Anger and Forgiveness: Resentment, Generosity, Justice. “[Confiar] significa relaxar as estratégias de autoproteção com as quais normalmente passamos pela vida, atribuindo grande importância às ações do outro e sobre as quais temos pouco controle. Significa, então, viver com um certo grau de desamparo.”
Para a filósofa, ao confiar em alguém, esperamos que a pessoa mantenha seus compromissos, acreditando que eles sejam importantes para o seu próprio crescimento. “Embora normalmente não se decida confiar de forma deliberada, a disposição de estar nas mãos de outra pessoa é uma espécie de escolha, pois certamente se pode viver sem esse tipo de dependência… Viver com confiança envolve profunda vulnerabilidade e algum desamparo, que pode facilmente ser desviado para a raiva.”
A estabilidade é questionável na Terra de Ooo. A única constante por ali parece ser a mudança. Assim, da mesma forma que aquele Finn que prometeu aceitar o amigo caroço não é o mesmo Finn que se viu encarando a situação real, aquele Brod que recebeu o pedido de queimar o trabalho de Kafka não é o mesmo Brod que avaliou o material e viu ali um absurdo potencial literário. As circunstâncias mudam, e as respostas a elas também — o que deixa a decisão de Brod muito mais próxima de uma desobediência do que de uma traição. Ou, como colocou Heráclito, em sua famosa afirmação: “Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou”.
Em vários momentos, mais do que um desenho infantil, Hora da aventura se mostra uma eficaz e supercolorida metáfora para a vida. A maior delas parece ser a ideia de ciclos, constâncias e recomeços que orbita grande parte da animação — de fato, no episódio “Cadeia Alimentar”, da sexta temporada, esse conceito circular fica escancarado. É por isso que, apesar de ter encerrado seus episódios em 2018, depois de dez temporadas, a série não parece ter acabado.
Da mesma forma, ao escolher desobedecer a Kafka, Brod deu início a um novo ciclo na vida do autor. E, mesmo que não coubesse a ele essa decisão, a entrada de Kafka no panteão dos grandes escritores da humanidade parece redimir Brod de qualquer desobediência. Por mais que se questione sua decisão, ninguém questiona o valor literário de Kafka, como se essas coisas não tivessem uma relação íntima. De certa forma, Brod encontrou a cura para os caroços de Kafka.

Em um ensaio para a revista The Believer, o escritor e professor da Universidade da Califórnia Jeff Fort analisou o insano interesse por absolutamente qualquer rascunho sobre a vida de Kafka. “Os leitores precisam conhecer sua vida mais desesperadamente do que a de outros escritores, porque sua arte consistia em transformar, traduzir e codificar os elementos mais íntimos daquela vida em alegorias oníricas que parecem romper todos os laços com o mundo da forma que o conhecemos, ao mesmo tempo que continuamente prometem revelar algo essencial sobre esse mundo”, escreveu Fort.
Ao contrário do que se pensa, a vida de Kafka não foi levada pela tuberculose em 1924. Mesmo depois de partir, ele continua transformando, traduzindo e codificando os elementos da vida. Se literatura e autor se confundiam na própria figura de Kafka, como ele mesmo disse ao pai de sua noiva, o que aconteceu depois de sua morte foi apenas mais uma história que ele próprio poderia ter escrito.
*Nathan Fernandes é escritor e jornalista, já colaborou com publicações como Galileu, Superinteressante, Veja e Playboy. Fala sobre ficção científica e os mistérios do Universo através do projeto PunkYoga no Instagram @nathanef
Freitas
Nossa! Gostei do li aqui. Mas queria saber mais. Como ? Já
estou te seguindo 🙂